Menu
Brasil

Saiba quem foi Zumbi dos Palmares, novo pivô da guerra cultural bolsonarista

O grupo decide recuperar a figura de Zumbi em oposição justamente à Princesa Isabel. Com isso, deixam de homenagear uma mulher branca supostamente redentora

Redação Jornal de Brasília

19/05/2020 17h16

Consciência Negra

Clara Balbi
São Paulo, SP

No último 13 de maio, Dia da Abolição da Escravatura, a Fundação Palmares, responsável pela promoção de manifestações culturais negras, publicou uma série de artigos relacionados à data. Se em anos anteriores o feriado foi chamado de “Dia Nacional de Denúncia contra o Racismo” ou ainda de “dia da falsa abolição” pela entidade, sob a gestão do bolsonarista Sérgio Camargo, porém, seu tom mudou dramaticamente.

Num dos textos, o foco é a Princesa Isabel, lembrada por sua “preocupação sincera e empenho ativo na libertação, indenização e assentamento dos escravos”. Noutro, o advogado e abolicionista Luiz Gama é elogiado por sua luta contra a escravidão e chamado de “o merecido herói do povo brasileiro”. Ambos são assinados por diretores da instituição.

Os artigos mais extensos, porém, são sobre um personagem que batiza outro feriado, que acontece daqui a seis meses – Zumbi dos Palmares. O mais polêmico deles é assinado pelo jornalista e professor Luiz Gustavo dos Santos Chrispino. A começar pelo título: “Zumbi e a Consciência Negra – Existem de Verdade?”.

Nele, Chrispino questiona o que chama de endeusamento de Zumbi pelo movimento negro, e lança dúvidas sobre a historicidade do personagem, que “pode ate ter existido […] mas, esta longe de ser esse mega ultra super defensor dos negros”.

Ele avança, então, de modo a concluir que Zumbi, assim como o movimento negro, foram usados a partir da década de 1970 pela “luta esquerdista […] como massa de manobra” para “separar a populaçao em nichos pelos políticos e partidarios da transformaçao do Brasil num pais comunista”.

Mas o que de fato se sabe sobre Zumbi? A historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz esclarece de pronto que, ao contrário do que insinua o título do artigo de Chrispino, não há dúvida de que o personagem existiu e liderou o quilombo de Palmares, o maior do eixo afro-atlântico, localizado na antiga capitania de Pernambuco, no século 17.

Schwarcz lista uma série de registros que, indo de 1679 até 1695, ano da morte de Zumbi, citam o personagem. São documentos produzidos pela própria Coroa, correspondências e pareceres que narram as tentativas deles de acabar com o quilombo. Nesse sentido, afirma a historiadora, é um contrassenso afirmar que Zumbi foi uma invenção da esquerda. Quem narrou sua trajetória foi a própria repressão colonial.

A biografia de Zumbi também é conhecida, diz Schwarcz. Ele nasceu em 1655 no próprio quilombo de Palmares, mas foi feito prisioneiro e levado para viver na vila de Porto Calmo. Foi batizado com o nome cristão de Francisco, e educado em latim e em português pelo padre português Antonio Melo. Em 1670, então com 15 anos, fugiu para Palmares.

“Sabemos localizar o percurso da pessoa com esse nome, e quando ele foi morto. O que não temos é a descrição física de Zumbi”, diz Schwarcz. “Mas isso não impediu, por exemplo, que nossa historiografia construísse a imagem de Tiradentes.”

Já a associação de Zumbi ao movimento negro data de fato dos anos 1970, com a fundação Movimento Negro Unificado, o MNU, afirma a historiadora Ynaê dos Santos Lopes, professora da Universidade Federal Fluminense, a UFF.

O grupo decide recuperar a figura de Zumbi em oposição justamente à Princesa Isabel. Com isso, deixam de homenagear uma mulher branca supostamente redentora, para contar uma história protagonismo dos próprios negros.

E, afirma Lopes, é inegável que “Palmares é um cancro no meio da história brasileira”. “Dentro desse contexto que era o mais antagonizante possível [da escravidão], esses homens criaram praticamente um Estado, que vira uma das maiores ameaças para a Coroa Portuguesa no Brasil. Não é qualquer coisa”, ela diz sobre o quilombo que deu nome à Fundação hoje presidida por Camargo.

“Só elogiar a canetada da Princesa não procede”, diz Lilia Schwarz, acrescentando que a Lei Áurea era quase um golpe para garantir um Terceiro Reinado, ainda que mau sucedido.

“Sabemos que a abolição foi um processo coletivo, que envolveu escravizados, profissionais liberais negros e brancos, trabalhadores, abolicionistas”, afirma a historiadora. “E o Brasil em 1888 ocupava a vexaminosa posição de ser o último país a abolir a escravidão mercantil, depois ainda dos outros atrasões, ou seja, Estados Unidos, Porto Rico e Cuba.”

É na articulação entre Zumbi, o movimento negro e “grupos esquerdizantes da sociedade” que o artigo de Chrispino mais chama atenção, no entanto. Sem citar nenhum tipo de fonte –fato justificado pelo autor pelo fato de que o texto é de opinião, e não acadêmico–, o autor afirma que o movimento negro cria “cada vez mais a separaçao social que interessa apenas a politica esquerdizante, que busca levar nossa patria a um vies que difere completamente do verdadeiro […] brasileiro”, cuja índole é definida como “amistosa, pacata, alegre, festeira dentro deste amálgama que e a nossa gente miscigenada”.

São noções que, segundo Ynaê Santos Lopes, recuperam ao pé da letra a visão do Estado brasileiro no final da Primeira República. Então, a tensão racial, expressada também na desigualdade econômica, foi minimizada com a introdução do mito da democracia racial, segundo o qual os três antepassados do povo brasileiro, portugueses, negros e indígenas, teriam contribuído para a formação da identidade brasileira.

“O que eles fazem é recuperar uma ideia de Brasil que parte do pressuposto que a desigualdade é apenas socioeconômica”, ela diz. “Você retira o conflito.”

A visão ajuda a explicar ainda porque Luiz Gama aparece entre os artigos da Fundação Palmares como uma alternativa a Zumbi.

Ou mesmo porque Sérgio Camargo sugeriu, numa enquete do Twitter na semana passada, mudar o nome da Fundação Palmares para o do engenheiro André Rebouças, outro abolicionista, ou o escritor Machado de Assis –embora Camargo tenha garantido que não há nenhum projeto nesse sentido no momento.

“É óbvio que são nomes importantes. Mas eles ascenderam socialmente, circulavam entre a intelectualidade branca. E estão historicamente apartados da herança africana”, diz Lopes, lembrando que há indícios de que o quilombo de Palmares reconstruía certos aspectos das sociedades do continente.

“Isso só reforça a necessidade de continuarmos falando de Palmares, e de Zumbi, um escravizado fugido, que lutou no fronte contra o sistema. O que não significa não falar desses outros homens.”

Presidente da Unegro, entidade que luta contra o racismo, na capital paulista, Fernanda de Paula diz que encara a publicação dos textos pela Fundação Palmares como uma maneira de desviar de questões que afligem a população negra diretamente, em especial em meio ao colapso da saúde vivido em meio à pandemia.

Autor de uma graphic novel que conta a história do quilombo de Palmares, “Angola Janga”, Marcelo D’Salete diz que os textos estão alinhados com o alinhamento da Fundação Palmares no governo Bolsonaro, que desconsiderou uma série de batalhas históricas, não só de negros.

“Esse grupo recusa a realidade de injustiça que impulsiona essas lutas. Eles buscam reescrever e afirmar uma narrativa própria para sua legitimação”, afirma o quadrinista.

Com isso, afirma Lilia Schwarcz, a Fundação transforma em guerra ideológica o que na realidade é um exercício de história. “Vivemos nesse momento de grande retrocesso da democracia. E sempre acontece essa tentativa de manipular a história. Mas história não é bula de remédio, é trabalhar com arquivos, fontes e documentos primários. Não é cloroquina.”

As informações são da FolhaPress

    Você também pode gostar

    Assine nossa newsletter e
    mantenha-se bem informado