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Brasil

Pressão e exposição de modelos infantis ameaçam desenvolvimento de crianças, dizem especialistas

“Quando você é uma criança, olha na televisão e fica deslumbrada”, diz jovem

Agência UniCeub

14/10/2019 15h46

Gabriela Gallo e João Pedro Rinehart
Jornal de Brasília/Agência UniCeub

Imagine trabalhar dias inteiros. Quando não trabalha o dia inteiro, estuda pela tarde e a noite vai para o trabalho. Imagine dar duro e não conseguir chegar aonde quer por conta de poucos centímetros. Imagine ter que percorrer grandes distâncias todos os dias de trabalho para poder ter uma chance. Agora imagine ter essa rotina com 8 anos de idade. 

Milena Soares, 20, atualmente é universitária, mas as lembranças da carreira de modelo mirim deixaram marcas na vida dela. “Tudo começou com 8 anos. O interesse no começo foi meu”. Mas a jovem recorda que familiares e outros adultos  comentavam que ela viajaria o mundo, assim como a modelo Gisele Bündchen. “Plantaram essas coisas na minha cabeça. E quando você é uma criança, olha [as modelos] na televisão e fica deslumbrada, então eu quis muito ir”. Mas a ex-modelo lembra que  não era bem assim. “Não tinha esse glamour que eu queria que tivesse e, mesmo se tivesse, eram dois minutos, e o resto, de muito trabalho.” 

“Desde que eu era bebê minha mãe já fazia algumas fotos comigo porque as pessoas falavam que eu era bonita pra ser modelo, aí minha mãe começou a me levar” conta Milena

O que diz a Lei

De acordo com o professor de direito trabalhista Paulo Rená, de maneira geral, adolescentes maiores de 14 anos podem trabalhar como aprendiz. E, a partir dos 16 anos, passam a poder ter a carteira assinada. “Mas não podem trabalhar à noite, nem em condições insalubres ou perigosas.” afirma. Sobre trabalhos artísticos, que estão previstos por lei, o professor afirma que é necessário estar atento a eventuais explorações para proteger jovens. “Essa decisão judicial determina a duração diária, semanal ou mensal; a frequência e em que condições. Se não forem respeitadas, revoga-se a autorização.”

O advogado também ressalta que essa autorização não pode ser coletiva. Dessa forma, se uma agência possui grande número de modelos crianças, todas necessitam de suas permissões individuais, dadas às duas questões pessoais e circunstâncias.

“O ECA assegura a proteção no trabalho e o direito à profissionalização”. Isso acontece de forma a garantir que o ingresso no mercado de maneira adequada, ou seja, que respeite as individualidades da criança. “O pressuposto disso é que não haja uma sujeição à forma de trabalho que prejudique o pleno desenvolvimento da criança e do adolescente em uma pessoa adulta”, completa. Em outras palavras, o trabalho infantil pode ser aceito caso sirva com propósito pedagógico e voltado para o pleno desenvolvimento pessoal e social do indivíduo.

Milena afirma que sente que perdeu parte de sua infância em seu período nas passarelas “Era muita responsabilidade para uma criança […] quando dava o intervalo a gente [minhas amiguinhas que estavam no meio comigo] ia brincar de pique pega. Todo dia era uma loucura diferente, eu quase não tinha final de semana livre, era uma coisa bem puxada”. Na época ela ia três vezes na semana em seu treinamento “Eu estudava de tarde e de noite eu não descansava – como minhas amiguinhas descansavam, ficavam em casa, assistiam a desenhos – eu tinha que ir pra lá e pra mim era muito difícil”, relata a ex-modelo.

Transtornos

Marthan Angelo, representante de uma agência de modelos em Brasília, afirma que a organização tem em torno de 3 mil a 4 mil crianças participantes. O entrevistado conta que a agência trabalha numa via de mão dupla ao chamar os modelos. “Tanto a agência que vai atrás quanto familiares trazem nossas modelos”. Ele acrescenta que a agência trabalha com todos os tipos de representatividade. 

Em relação à decisão de crianças que querem ser modelos, a psicóloga e neuropsicóloga Andrea França, de  41 anos, afirma que geralmente, essa vontade não vem dela [da criança] porque essa criança só vai ter acesso a esses concursos através dos pais. “[…] Geralmente são os pais que, ou possuem baixa autoestima ou querem resgatar suas frustrações através dos filhos.”

As possíveis consequências desse sonho podem gerar instabilidade emocional a crianças e adolescente. Grande parte das meninas que participam desde pequenas tendem a desenvolver transtornos alimentares tentando alcançar um padrão quase impossível. “De repente você tem uma dieta, com 8/9 anos. Você já é magra mas precisa entrar na linha porque você precisa ter um corpo X, Y”, conta Milena.”Eles viam o corpo de crianças, de meninas ‘gordinha demais, baixinha demais, você não pode, você pode porque você tem o cabelo tal’. Eu acho que crianças não tem que ter contato com esse tipo de coisa”, complementa a estudante.

Andrea França conta que as crianças acabam entrando em regimes e procedimentos estéticos que não são recomendados para sua idade. Se a criança, por algum motivo, engorda ela vai ficar pensando que ela não é boa o suficiente porque ela está gorda’. Ela complementa “esse meio, especialmente os concursos de beleza tem uma exigência de um padrão estético de beleza e comportamento que as crianças ainda não tão preparadas emocionalmente para isso […] atrapalha a auto estima, essas crianças são cobradas principalmente pelo aspecto físico, por aspecto que às vezes elas nem estão desenvolvidas para aquilo”. 

Algumas dessas marcas podem se estender por um longo tempo “[…] Até hoje eu tento desconstruir  isso mas não consigo. Se eu sinto que ganhei um pouco mais de peso, eu fico dias sem comer direito”, afirma Milena. Ela continua que há estímulos indevidos por parte dos adultos. “Quando você vai pesquisar sobre o que é ser modelo, as pessoas falam que você precisa começar o mais cedo possível. Eu acho que eles falam isso porque quando você é criança, mais nova, você absorve as coisas muito mais rápido e você toma aquilo como uma verdade.”

Erotização precoce

O caso polêmico que envolveu o programa Silvio Santos, em que crianças apareciam em trajes de banho diante de mediações inadequadas do apresentador, traz à tona histórias de agências que trabalham com desfiles na categoria trajes de banho. Marthan afirma que a agência em que atua, dependendo do evento e da proposta do estilista, às vezes trabalha com modelos de roupão, sunga, e outras partes de banho. Milena também contou que desfilou de biquíni em seu primeiro desfile.

Silvio Santos com as meninas participantes

 

 

 

 

 

 

 

 

O apresentador Silvio Santos realizou no dia 22 de setembro deste ano um concurso de beleza com meninas de 8 a 10 anos. Em determinado momento do programa, as crianças desfilaram de maiô e os jurados tinham que decidir qual tinha as pernas, colo, rosto e conjunto mais bonito. Sua iniciativa foi alvo de polêmicas e repúdios em vista da sexualização de crianças. 

Sobre essa erotização infantil, Andrea comenta que “[a criança] vai aprender que, a partir do corpo, ela pode ganhar alguma coisa. A criança ainda não tem a noção do sexo, mas ela vai começar a aprender desde bem novinha que através do corpo ela pode ganhar coisas que de outra maneira ela não ganharia”. Ela lamenta a posição do comunicador “Querendo ou não, ele é um exemplo pra muitas pessoas […]. Se isso começar a dar ibope, vai começar a voltar essa erotização das crianças, mostrando como se as crianças se resumissem a isso: um corpo bonito.” 

Ela também alerta sobre as consequências dessa exposição ao corpo infantil. “Você dá abertura para adultos, casos de pedofilia, de repente se aproximarem dessas crianças. Acho que abre tanto para a erotização precoce quanto para abusos sexuais, porque uma foto de uma criança de biquíni pode ser o suficiente para um pedófilo se aproveitar disso.”

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