Menu
Brasil

#Mundonovo: bicho não é coisa

O Senado reconheceu na quarta-feira que os animais são seres sencientes, de acordo com o projeto, os animais são passíveis de sofrimento

Lindauro Gomes

09/08/2019 6h33

Grace Perpetuo
[email protected]

Se você duvida, caro leitor, basta acariciar o seu cão, em casa, ou observar uma imagem do fotógrafo dinamarquês Mogens Trolle [http://www.mogenstrolle.com/] para ter certeza: animal não é coisa. O fato foi tardiamente reconhecido, no Brasil, ao fim de uma histórica sessão no Senado Federal na tarde da última quarta-feira (7). Nela, aprovou-se o Projeto de Lei da Câmara (PLC) 27/2018, do deputado Ricardo Izar (PSD/SP) – que “determina que os animais não humanos possuem natureza jurídica sui generis e são sujeitos de direitos despersonificados, dos quais devem gozar e obter tutela jurisdicional em caso de violação, vedado o seu tratamento como coisa”.

Em outras palavras: de acordo com o projeto, os animais serão reconhecidos como seres sencientes, dotados de natureza biológica e emocional e passíveis de sofrimento. Trata-se de um enorme salto na compreensão desses seres que, nas contundentes palavras do escritor e naturalista norte-americano Henry Beston, “não são irmãos, nem subalternos: são outras nações, apanhados conosco na rede da vida e do tempo, prisioneiros conosco do esplendor e do tormento da Terra”.

Avanço civilizacional

Relator do projeto na Comissão de Meio Ambiente (CMA), o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) observou que a nova lei não afetará hábitos de alimentação ou práticas [ainda consideradas] culturais, mas contribuirá para elevar o entendimento da legislação brasileira sobre o tratamento de outros seres. Para o senador, não é mais possível “pensarmos na construção humana se a humanidade não tiver a capacidade de ter uma convivência pacífica com as outras espécies”.

Mesmo um tanto simbólica, a vitória foi celebrada com grande emoção por ativistas da causa animal e simpatizantes, que vinham manifestando sua luta nas redes por meio da hashtag #animalnãoecoisa – pois representa um avanço civilizacional já alcançado por nações como Reino Unido, Suíça, Alemanha, Áustria, França, Portugal e Nova Zelândia. Nossa vizinha Argentina, por exemplo, concedeu o primeiro habeas corpus animal do mundo a um chimpanzé, transferindo a primata Cecilia para um santuário no Brasil, após 19 anos na relativa prisão de um zoológico.

Ainda assim – lamentavelmente, talvez – Randolfe acatou a emenda dos senadores Major Olímpio (PSL-SP), Otto Alencar (PSD-BA) e Rodrigo Cunha (PSDB-AL) que ressalva do alcance do projeto animais utilizados em pesquisas científicas, em práticas [medievais] como a vaquejada e na agropecuária. Por ter sofrido alterações, o texto retornará à Câmara para avaliação.

Na prática

O texto da PLC também acrescenta dispositivo à Lei dos Crimes Ambientais para determinar que os animais não sejam mais considerados bens móveis no âmbito do Código Civil. Na prática, os bichos ganham, assim, mais uma defesa jurídica em caso de maus-tratos. A lei também dirá que os animais – em um divórcio de seus tutores, por exemplo – devem integrar discussões nas varas de família. A ideia está a anos-luz da realidade atual, em que animais domésticos são partilhados como bens móveis – equivalentes a uma cadeira ou televisão.

A aprovação da lei pode também abrir caminho para outros projetos, como o que aumenta a pena por crime de maus-tratos. Atualmente prevista na Lei de Crimes Ambientais (1998), a punição vai de três meses a um ano. Um projeto de lei caminha no Senado para ampliá-la ao período de um a quatro anos.

Fresta

O projeto abre uma fresta em uma porta há milênios fechada. Coleção de textos religiosos de valor sagrado para o cristianismo, a Bíblia, por exemplo, diz que os seres humanos deveriam dominar “os peixes do mar, as aves do céu e todos os animais que se movem pela terra” (Gênesis 1:28) e permite que as pessoas matem animais para se alimentar ou ter roupas: “Tudo o que vive e se move lhes servirá de alimento; assim como lhes dei os vegetais, agora lhes dou todas as coisas [os animais]” (Gênesis 9:3). É razoável concluir que o criador judaico-cristão considera os seres humanos criaturas superiores aos animais. Milênios depois, a ideia persiste.
Paradoxalmente, porém, a mesma Bíblia registra que “a alma do Senhor odeia quem ama a injustiça (Salmos 11:5)” – e que um dia o criador virá à Terra para dar o castigo àqueles que destroem a natureza: “Chegou o tempo […] de destruir os que destroem a Terra” (Apocalipse 11:18). Por fim, a Bíblia descreve o tempo em que virá a administração correta do planeta e da natureza, prevalecendo a harmonia entre o homem e os animais: “[..] E a criança de peito há de brincar sobre a toca da naja; e a criança desmamada porá sua mão sobre a fresta de luz da cobra venenosa (Isaías 11:6-8)”.

Essa ideia idílica ocupa mentes admiráveis mundo afora – como a do naturalista inglês Sir David Attenborough, que vê em certos pássaros uma capacidade artística, “o que implica que apreciam a beleza tanto quanto nós”; ou Mogens Trolle, que busca “olhar nos olhos” dos animais que fotografa para evocar suas expressões e sentimentos.

Por fim: a ideia de que os animais são sencientes e têm direitos nos leva inexoravelmente a outra premissa: a de que deve-se abandonar o especismo [tão nefasto quanto o sexismo, o machismo e o racismo] e assumir o veganismo, que combate toda forma de opressão animal (e também humana) – mas isso é assunto para outra matéria. Boa reflexão, leitor.

Pensamento

“Precisamos de outro […] conceito de animal. Distante da natureza universal e vivendo por complicados artifícios, o homem na civilização examina a criatura através da lente de seu conhecimento, e vê assim […] a imagem distorcida. Somos condescendentes com eles por sua incompletude, por seu trágico destino ao terem tomado forma tão abaixo de nós. E aí erramos. Pois o animal não será mensurado pelo homem. Em um mundo mais antigo e mais completo que o nosso, eles se movem perfeitos, dotados de sentidos que perdemos […]. Não são irmãos, nem subalternos: são outras nações, apanhados conosco na rede da vida e do tempo, prisioneiros conosco do esplendor e do tormento da Terra.”
HENRY BESTON, The Outermost House: A Year of Life on the Great Beach of Cape Cod

    Você também pode gostar

    Assine nossa newsletter e
    mantenha-se bem informado