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Brasil

Exclusivo: suposto esquema de editoras no Ceará desvia milhões da educação

No momento em que Congresso discute a renovação do Fundeb, o JBr revela que a PF investiga esquemas irregulares no Ceará que se repetem em outros estados

Lucas Valença

31/07/2020 7h13

Na semana passada, a quase unanimidade da Câmara dos Deputados aprovou Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que renova o Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb), ampliando significativamente a parcela de recursos que caberá à União. Dos atuais 10%, a contribuição federal passará para 23%. Trata-se da principal fonte de financiamento da educação básica brasileira. De cada R$ 10 investidos, R$ 4 vêm do Fundeb. A proposta ainda precisa ser ratificado pelo Senado.

Há, porém, um sinal de alerta que preocupa parlamentares e profissionais que se ocupam com a gestão dos recursos públicos brasileiros: a real aplicação desses fundos quando repassados aos governos municipais.

O Jornal de Brasília teve acesso a um inquérito da Polícia Federal (PF) (nº 0038/2019-4) que investiga supostos desvios de recursos do Fundeb e do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef) no Ceará. A apuração tem sido feita pela delegacia de Repressão a Crimes Fazendários em Juazeiro do Norte. A PF, no entanto, tem investigado possíveis irregularidades na aplicação dos fundos em vários entes da federação.

Nesta semana, a corporação policial cumpriu mandados de busca e apreensão na casa do governador do Piauí, Wellington Dias (PT), em uma operação que investiga a primeira dama do estado, a deputada federal Rejane Dias (PT).

No caso investigado no Ceará, a avaliação policial é de que há “indícios de malversações de recursos públicos e possível fraude […] na contratação da empresa DIDATICOS EDITORA LTDA – ME” para o fornecimento de dois livros ao município de Juazeiro do Norte (CE) com a utilização de recursos de precatórios referentes ao Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef).

Segundo a apuração dos investigadores, nos anos de 2017 e 2018 a empresa Didaticos Editora LTDA, registrada no CNPJ nº 17.164.399/0001-49, foi contratada para o fornecimento de livros à prefeitura.

Em 2017 foram três parcelas pagas (setembro, outubro e novembro) à fabricante para a aquisição de 40 mil produções literárias intituladas “Juazeiro do Norte – Cidade da Gente: História e Geografia”. O município chegou a desembolsar R$ 93,75 por unidade, somando aproximadamente R$ 1.25 milhão por cada um dos meses pagos. Os R$ 3.75 milhões gastos, neste caso, não passaram por processo de licitação.

Veja a publicação que dispensa o processo de licitação:

Já em 2018, o pagamento de R$ 2.547.000,00 para a compra de 30.000 exemplares da produção nomeada de “Meu Primeiro Almanaque Ilustrado de Matemática” foi feita em uma parcela única no mês de julho. Cada aquisição saiu por R$ 84,90.

Ao total, a prefeitura cearense gastou na compra de 70 mil peças, R$ 6.297.000,00. Por se tratar de recursos federais, a investigação, instaurada no dia 28 de fevereiro de 2019, tem sido conduzida pela delegada federal Josefa Maria Lourenço da Silva.

Vale ressaltar que o capital social da empresa é de R$ 605.000,00 e, segundo a apuração da Polícia Federal, “a DIDÁTICOS EDITORA não tinha funcionário com carteira registrada no dia 13/02/2019”.

Em um outro documento (Informação Policial nº 53/2019), também obtido pelo JBr., que baseou a instauração do inquérito, policiais federais afirmam à delegada que, em uma “análise preliminar”, os agentes “identificaram indícios de malversação dos recursos públicos”.

Horizonte expandido

Só que a Didáticos Editora LTDA também forneceu material didático e paradidático a vários outros municípios do estado, que também estão sob suspeita. Somando-se as 70 mil produções vendidas a Juazeiro do Norte, a empresa arrecadou um total de R$ 16.532.722,00 das cidades com a venda de 155.182 livros.

As produções literárias estão listadas em uma planilha anexada ao processo, mas algumas foram destacadas. Ao preço fixo de R$ 125 a unidade, as prefeituras de Araripe, Acopiara e Pedra Branca pagaram valores vultosos à fornecedora privada. Para o livro, “Araripe – Cidade da Gente: Estudos Regionais (Fundamental)”, foram gastos R$ 625 mil. A produção “Acopiara – Cidade da Gente: Estudos Regionais”, no entanto, rendeu R$ 1 milhão à entidade privada.

Já com relação ao município de Pedra Branca, o livro “Pedra Branca Cidade da Gente Estudos Regionais” teve duas remessas compradas. A de agosto custou R$ 229 mil, valor inferior ao pago em setembro, R$ 270 mil.

Veja parte da tabela:

Modelo replicado

Os investigadores também analisam o fornecimento de livros a municípios de outros estados. Segundo informações obtidas pelo jornal, o suposto modelo irregular de expedição de livros didáticos também passou a ser replicado por outras empresas.

Em um dado momento, os investigadores descrevem:

“Verifica-se indícios de fraudes em processos de dispensa de licitação e processos licitatórios para aquisição de livros por valores vultosos, com a contratação de empresas como fornecedores, as quais, aparentemente, sem capacidade econômica e sem qualquer funcionário”.

Também estão no roll de documentos, relatórios financeiros fornecidos pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF) que demonstram movimentações de valores consideráveis dos fornecedores.

Só que entre as empresas apontadas com possíveis irregularidades, está uma lista de fornecedores de materiais educacionais que, segundo as investigações, são “de fachada” ou que se utilizam do “emprego de laranjas”. Dentre as listadas está a Fortal Comércio de Gás LTDA – EPP, registrada no CNPJ nº 11.522.534/0001-02, que, de acordo com um ofício apresentado, recebeu R$ 5.543.770,72 relacionados ao Pregão Eletrônico nº 09/2018-SEDUC.

“Os livros paradidáticos adquiridos através deste pregão eletrônico foram pagos com recursos do precatório do Fundef, de acordo com informação da Secretaria de Educação de Juazeiro do Norte, vide oficio nº 1016/2018-A.J./SEDUC de 06/12/2018”, explica o texto do inquérito.

Esta empresa, no entanto, como enfatiza o próprio nome, tem como objeto principal a venda de gás de cozinha, como constatou a própria Polícia Federal.

Veja a fachada da empresa também anexada ao inquérito:

Uma das suspeitas contra a “Fortal Gás”, que depois adotou o nome fantasia Discovery Comércio e Logística Ltda, foi levantada ainda no pregão quando representantes da PF observaram que, em um dos lotes disputados, a empresa ofereceu um valor com uma diferença mínima para com o segundo preço mais baixo da disputa. A margem foi de apenas um centavo.

Confira a diferença nos valores oferecidos por unidade pelo 1º item:

Este “padrão”, concluiu a PF, foi utilizado para que a “maioria dos lotes” (do pregão) fossem faturados. “Em todos os lotes a empresa FORTAL GÁS enviou a menor proposta inicial, sempre com uma diferença mínima da proposta de preço comum as outras concorrentes”, diz o documento.

Confira alguns exemplos anexados ao processo:

“A identificação desse padrão de propostas de preços consignada na Ata da Sessão do Pregão demonstra de forma cabal a existência de fraude a concorrência do pregão eletrônico e o conluio entre as empresas”, destacaram as autoridades policiais.

Um entendimento do Tribunal de Contas da União (TCU) chegou a receber destaque no processo, veja:

Outro fato curioso que elevou a suspeita de fraude por parte dos investigadores foi a constatação de que, quando o setor de compras de Juazeiro do Norte solicitou a cotação de preços a três empresas registradas em Fortaleza, capital do Ceará, o mesmo telefone havia sido utilizado no registro de dois dos negócios na Receita Federal.

Diz o texto: “fato relevante é que as empresas MODELO COMERCIAL e MÁXIMA DISTRIBUIDORA declaram à Receita Federal o mesmo telefone de contato, o que pode caracterizar conluio e fraude na cotação de preços para o pregão”.

Outras empresas e pessoas investigadas estão contidas nos documentos obtidos pelo Jornal de Brasília, mas muitos receberam valores inferiores às citadas no texto desta reportagem.

Busca e Apreensão no Piauí

Em uma operação distinta, a Polícia Federal chegou a cumprir 12 mandados de busca e apreensão nesta segunda-feira (27) em Teresina, capital do Piauí. A terceira fase da operação “Topique”, como foi batizada, chegou a atingir a primeira-dama do estado e ex-secretária de Educação do Piauí. Atualmente Rejane Dias é deputada federal.

A operação investiga possíveis desvios de até R$ 50 milhões de recursos do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb).

O governador Wellington Dias não foi alvo da operação.

Após a operação, o governador do Piauí chegou a se manifestar publicamente sobre as investigações contra a primeira-dama e classificou como “espetáculo” e “desnecessária” a busca e apreensão em sua residência.

Fundeb na pauta de votação

Sob forte discussão nacional, o Fundeb chegou a movimentar os ânimos no Congresso Nacional nas últimas semanas e deve continuar no debate político pelos próximos meses.

A Proposta de Emenda à Constituição (PEC 15/15), que transforma o Fundo em política permanente do Estado, chegou a ser aprovada na Câmara dos Deputados na terça-feira (21). Antes de ir a plenário, a apreciação do texto chegou a ser adiada algumas vezes pelo empenho do Governo Federal em tentar deslocar recursos do Fundeb para o programa “Renda Brasil”, como desejava a equipe econômica do ministro Paulo Guedes.

Após o empenho do presidente da Câmara Baixa, Rodrigo Maia (DEM), a PEC recebeu, no segundo turno de votação, 492 votos favoráveis e apenas seis contra e uma abstenção. O texto agora aguarda apreciação do Senado Federal.

Foi neste contexto de movimentação política com relação ao tema, que o secretário-geral da Frente Parlamentar Mista da Educação, deputado Professor Israel Batista (PV-DF), ressaltou que as denúncias sobre possíveis desvios de recursos do Fundeb “são preocupantes, ainda mais neste momento em que o Congresso Nacional eleva essa pauta como questão prioritária para o País”.

“O fundo é decisivo para a educação brasileira e, desde que foi instituído, reduziu o abismo da desigualdade entre regiões ricas e pobres e equilibrou o investimento por aluno nas escolas públicas. O Fundeb funciona, é uma política elogiada no exterior, agora precisamos aperfeiçoar os mecanismos de controle e acompanhamento para que seus resultados sejam inquestionáveis”, afirmou o parlamentar federal.

Procurados, mas sem resposta

O Jornal de Brasília procurou contato com as empresas Didáticos Editora Ltda e Fortal Comércio de Gás LTDA, mas não recebeu retorno até a publicação desta reportagem.

Cada uma das prefeituras citadas também foram procuradas, mas devido à pandemia do novo coronavírus, o contato direto com os municípios pode ter sido afetado. Por esta razão, a reportagem se coloca à disposição para futuras manifestações.

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