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Brasil

Carga viral maior de coronavírus em crianças não significa contágio maior, dizem especialistas

O artigo dos pesquisadores de Harvard também demonstra que o receptor ECA2, ao qual o coronavírus se liga para infectar células humanas, é menos presente em crianças menores

Marcus Eduardo Pereira

22/08/2020 9h19

Tom Pennington/Getty Images/AFP

 O papel de crianças infectadas pelo novo coronavírus na transmissão do patógeno na sociedade segue sem ser totalmente compreendido, segundo infectologistas pediátricos. Isso aumenta as dúvidas da população com relação à volta às aulas, que está prevista para acontecer em outubro em São Paulo e vai fazer crescer a circulação de crianças e a exposição dos mais jovens à Covid-19.
Um estudo publicado nesta semana apontou que a carga viral do coronavírus nos mais jovens nos dois primeiros dias dos sintomas pode ser maior do que em adultos hospitalizados em estado grave, mesmo quando os sintomas nas crianças são mais leves. O achado mobilizou cientistas e médicos no mundo todo, que alertaram para conclusões precipitadas sobre o artigo.
Médicos ouvidos pela reportagem chamaram a atenção para uma série de ressalvas. Apesar da diferença nos dois primeiros dias, ao longo do tempo as cargas virais de adultos em estado grave e crianças infectadas pelo vírus não apresentaram diferenças, segundo o estudo, publicado na revista científica The Journal of Pedriatics por pesquisadores da Universidade Harvard e do Massachusetts General Hospital (MGH), nos Estados Unidos.
No texto, os pesquisadores escrevem que os resultados podem indicar que as crianças sejam uma fonte potencial de contágio. Apesar de possível, essa interpretação está fora do alcance do estudo, alertam especialistas.
Além disso, o número de participantes do estudo é considerado pequeno.
Ao todo, 192 pacientes do MGH com menos de 22 anos de idade participaram da pesquisa, 49 deles com a confirmação da infecção pelo Sars-CoV-2. Essas crianças haviam passado pelo hospital com algum sintoma relacionado à Covid-19. Os pesquisadores solicitaram autorização aos responsáveis dos jovens para só depois coletar o material, uma amostra da secreção nasal.
O procedimento é geralmente incômodo para crianças pequenas, e, por isso, a maior parte dos participantes do estudo tinham mais de 11 anos de idade.
“É esperada uma carga viral mais alta nos primeiros dias dos sintomas. Já os pacientes mais graves são internados cerca de sete dias após o início das manifestações, geralmente depois do pico de detecção do vírus no corpo”, afirma Luciana Becker Mau, infectologista pediátrica no Hospital Sírio-Libanês, no Instituto de Infectologia Emílio Ribas e no Hospital Municipal Infantil Menino Jesus.
“Ainda não está provado que quem tem a carga viral mais alta tem a doença mais grave ou transmite mais o vírus. Os autores do artigo falam que as crianças podem transmitir mais o vírus, mas não fazem esse teste”, diz a médica.
“A relação entre carga viral mais alta e maior transmissão ainda é incerta, e esse estudo não tem o poder de responder isso. Ele não investigou a transmissão”, afirma também o infectologista pediátrico Marco Aurélio Sáfadi, presidente do Departamento de Imunizações da Sociedade de Pediatria de São Paulo (SPSP).
Para Sáfadi, há outros fatores que determinam o potencial de transmissão além da carga viral. Ele destaca que, como a maioria das crianças é assintomática, a disseminação de partículas virais através de tosse, espirro ou vômito também é menor. “Não há como concluir que somente a carga viral determina a transmissão”, afirma.
Segundo o médico, a maior parte dos estudos é consistente em demonstrar, conjuntamente, que as crianças se infectam menos e, quando desenvolvem a doença, apresentam sintomas mais leves. Já o estudo americano não tem uma amostra aleatória, mas demonstra um viés ao selecionar apenas jovens que procuraram o hospital, um grupo mais suscetível a carregar uma carga viral mais alta.
O artigo dos pesquisadores de Harvard também demonstra que o receptor ECA2, ao qual o coronavírus se liga para infectar células humanas, é menos presente em crianças menores.
Para os especialistas, esse resultado também já era esperado e havia sido demonstrado por investigações anteriores. Um artigo publicado ainda em maio por cientistas de instituições americanas no Journal of the American Medical Association demonstrou que o ECA2 é menos comum nos mais jovens e fica mais numeroso conforme a idade aumenta.
A hipótese dos cientistas, ainda não completamente comprovada, é de que uma menor quantidade desse receptor seja responsável por menos infecções e menos casos graves entre as crianças.
Levantamentos e estimativas apontam que crianças e adolescentes são menos de 10% dos infectados pelo vírus no mundo, mesmo representando cerca de 25% da população total. Cientistas lembram que, com as quarentenas impostas, as crianças circulam menos do que os adultos e ficam menos expostas à doença. Por serem geralmente assintomáticas, elas também fazem menos exames para detectar o vírus.
Para Adriana Paixão, infectologista pediátrica da Beneficência Portuguesa de São Paulo (BP), é positivo que o artigo chame a atenção para a possibilidade de que as crianças sejam reservatórios do vírus. “Sabemos que mesmo quem não desenvolve a doença ou tem sintomas mais leves pode transmitir o vírus”, diz. Segundo ela, não está descartado que uma carga viral elevada possa indicar maior transmissibilidade, e isso deve ser levado em consideração no planejamento da volta às aulas.
Para Sáfadi, o retorno para a escola é necessário. Ele afirma que os dados europeus sobre a reabertura das escolas indicam que realizar a volta às aulas com os índices de transmissão controlados e estáveis não é um fator de impacto no crescimento de novos casos, embora possa causar surtos pontuais da doença.
Segundo Marcelo Otsuka, vice-presidente do Departamento de Infectologia da SPSP, a atenção aos números da doença é essencial para planejar o retorno à escola. “Os países que voltaram às aulas estavam com a transmissão em uma curva descendente; nossa transmissão ainda é alta”, afirma. “Os adultos circulam mais e devem começar o processo, adotando uma conduta adequada com cuidados de afastamento social e higiene, para que a volta das crianças às escolas seja possível”, conclui.
As informações são da FolhaPress

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