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Brasil

“Após esta pandemia, o mundo será diferente”, diz médica

Médica Claudia Lodesani é coordenadora da Médicos Sem Fronteiras (MSF) para a emergência de Covid-19 na Itália, um dos países mais afetados pela pandemia

Redação Jornal de Brasília

01/04/2020 8h25

A médica Claudia Lodesani é coordenadora da Médicos Sem Fronteiras (MSF) para a emergência de Covid-19 na Itália, um dos países mais afetados pela pandemia. Ela conta como o sistema de saúde do país, apesar de ser extremamente desenvolvido, entrou em colapso rapidamente diante do grande número de casos de infecção pelo novo coronavírus.

Segundo Claudia, boa parte dos médicos e enfermeiros está traumatizada porque nunca tinha lidado com uma situação assim. “Eles queriam falar sobre a crise, sobre o que estavam passando na linha de frente dessa emergência por duas ou três semanas. É algo que eles nunca tinham vivido antes.”

Chiara Lepora coordena os trabalhos da MSF em Lodi, cidade do norte da Itália que se tornou um dos epicentros da pandemia. A médica conta que todos os hospitais da região estão trabalhando no limite e é necessário tratar muitos pacientes em suas próprias casas.

“Tem uma pequena padaria perto da entrada do hospital e eu estava conversando com a padeira. Ela abre todo dia às 5h para poder oferecer café e croissants à equipe médica que está saindo do plantão noturno. E me contou que muitos médicos e enfermeiros pegam o café, vão sentar numa mesa ali no cantinho e começam a chorar. Eles choram para que consigam tirar isso de dentro deles e possam ir para casa cuidar de sua família e não demonstrar o quanto é duro”, diz Chiara.

Leia abaixo os dois depoimentos:

Claudia Lodesani:

“Antes, os serviços de saúde, tanto na Itália como na maior parte dos países europeus, eram focados no cuidado individual. Agora, eles têm que começar a pensar na saúde pública no contexto de uma epidemia. Fazer esse tipo de mudança é difícil para qualquer sistema de saúde. Eles precisam mudar a forma de pensar e agir, uma completa mudança de abordagem. Além disso, um fator comum nas epidemias é o número alto de pacientes que chegam aos hospitais ao mesmo tempo. Isso pode ter um impacto negativo mesmo nos sistemas de saúde de países desenvolvidos que não estão acostumados a lidar com esse número de pacientes.

Quando chegamos a Lodi, no norte da Itália, ficou imediatamente claro como muitos médicos e funcionários da área de saúde estavam traumatizados. Eles queriam falar sobre a crise, sobre o que estavam passando na linha de frente dessa emergência por duas ou três semanas. É algo que eles nunca tinham vivido antes. Eles estavam chocados pela velocidade com que tudo aconteceu.

Fomos capazes de ouvir e entender porque sabemos como é isso. Poder falar, chorar em frente de pessoas que entendem pelo que estás passando é muito importante. Te ajuda a perceber que não estás sozinho e te dá forças para continuares trabalhando.

O primeiro trabalho a fazer no combate a uma epidemia como essa é proteger quem está na linha de frente. Sem eles, não podemos responder à epidemia. Milhares deles estão ficando doentes em vários países afetados. Mantê-los em segurança e livres da infecção é chave. O passo seguinte é perceber que, embora os hospitais sejam vitais na resposta, o atendimento em casa é muito importante. Numa epidemia, não dá para focar apenas no tratamento hospitalar. Clínicos gerais e médicos de família têm também um papel vital. É preciso levar em conta toda a comunidade.

Eu trabalho para os Médicos Sem Fronteiras há 18 anos. Para mim, uma das maiores dificuldades desta crise é ver o sofrimento dos idosos. Nos hospitais, a maioria dos pacientes é idosa. Nos lugares em que já trabalhei com MSF, a maior parte dos pacientes era de crianças e jovens. Para mim, pessoalmente, há algo muito dramático na forma como as pessoas mais velhas são atingidas pela Covid19. Quando você chega numa unidade e é confrontado por oitenta, cem pessoas muito idosas, muito frágeis, é muito triste. Eles estão isolados de suas famílias, enquanto enfrentam a doença. Isso me afetou muito. Essa pandemia nos deixará afetados de formas diferentes, o mundo todo será muito diferente.”

Chiara Lepora:

“Temos um grupo de cerca de 25 pessoas trabalhando aqui na região da Lombardia. O sistema de saúde aqui é muito avançado, mas o vírus ultrapassou todas as tentativas de lidar como crescente número de casos. Os hospitais estão no limite. Na emergência do hospital de Lodi temos agora 80 leitos. Mas mesmo com todos esses leitos extra, a única maneira de recebermos um novo paciente é se algum outro se recuperar ou morrer.

Nosso principal trabalho é oferecer apoio à equipe médica dentro dos hospitais, fazendo todo o necessário para que médicos e enfermeiros se mantenham saudáveis. Se eles ficarem doentes, não haverá ninguém para tratar dos pacientes. Nós temos muita experiência na prevenção de infecção por conta de todas as epidemias que já enfrentamos pelo mundo. Estamos aqui para ajudar a criar caminhos e processos dentro dos hospitais para garantir que a equipe esteja protegida.

Fora dos hospitais, estamos trabalhando nas comunidades, com médicos de família, para ajudar a cuidar das pessoas em suas casas e também nos asilos de idosos. Como todos os hospitais já atingiram sua capacidade, não há escolha a não ser tratar pessoas com sintomas menos graves em suas casas.

Todo mundo aqui está trabalhando além de seus limites. É impressionante ver as pessoas trabalhando o tempo todo, tentando se adaptar, tentando aprender, tentando colaborar para salvar o máximo possível de vidas, tudo isso diante de tantas mortes.

Tem uma pequena padaria perto da entrada do hospital e Lodi e ontem eu estava conversando com a padeira. Ela abre todo dia às 5h da manhã para poder oferecer café e croissants à equipe médica que está saindo do plantão noturno. Ela me contou que muitos médicos e enfermeiros pegam o café, vão sentar numa mesa ali no cantinho e começam a chorar. Eles choram para que consigam tirar isso de dentro deles e possam ir para casa cuidar de sua família e não demonstrar o quanto é duro.

Numa crise como essa, em que as necessidades são tantas, escolhas muito duras têm que ser feitas. Como Médicos sem Fronteira, nós sabemos disso muito bem, por conta das situações críticas que enfrentamos em todo o mundo.”

Estadão Conteúdo

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