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Brasil

Alcântara: Base ameaça quilombolas

Retorno do centro espacial pode desalojar comunidade que vive na ilha do Maranhão

Olavo David Neto

09/11/2020 5h50

Ainda em meio à pandemia, cerca de 800 famílias quilombolas correm risco de serem despejadas dos territórios atualmente ocupados no Maranhão. Isto porque, para voltar a funcionar, o Centro Espacial de Alcântara – unidade cedida aos Estados Unidos por meio de acordo entre os governos -, necessita de uma “área de recuperação de destroços” que se soltam da carenagem de aeronaves e foguetes de longa distância no momento do seu lançamento. Entregue por meio do Acordo de Salvaguardas Tecnológicas (AST), Alcântara é aposta norte-americana para controle militar do Cone Sul e da África.

A terra em volta da base, já reconhecida pelo Estado brasileiro como pertencente às comunidades locais por meio de Resolução do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), carece apenas da titulação – ou seja, a confirmação oficial de que os hectares em questão são mesmo das comunidades que os pleiteiam.

Sem considerar a questão, o Executivo brasileiro assinou e o Legislativo aprovou a inclusão da negociação no ordenamento jurídico nacional. Sem ter a quem recorrer, os moradores repercutiram a situação na América do Norte.

Retenção de verbas

No início de outubro, parlamentares democratas – ou seja, opositores ao governo do republicano Donald Trump e que, tudo indica, voltarão ao poder agora com a vitória de Joe Biden, enviaram documento à

Casa Branca no qual pediam a retenção de verbas destinadas ao funcionamento da Base de Alcântara.

O pedido dos signatários, dentre os quais se destaca Bernie Sanders, que foi pré-candidato à Presidência, era para que o governo estadunidense se abstenha de participação em projetos que coloquem as comunidades quilombolas sob “ataques racistas e desapropriações”.

Cientista político, Danilo Serejo comemorou a ação dos democratas, dada depois de solicitação dos movimentos quilombolas em Alcântara, mas se mostrou pesaroso por não ser ouvido no Legislativo do próprio país. “[A carta] É uma resposta a um pedido feito por nós. É lamentável que não haja essa discussão aqui”, ataca Serejo. Morador do Canelatiua, quilombo situado a poucos quilômetros do Centro Espacial, ele aponta que a base foi construída sem licença ambiental e sem estudo de impacto antropológico.

Em meio às eleições presidenciais nos EUA, Danilo comentou ao JBr que, ao seu ver, não haverá mudanças sensíveis na gestão da base com uma eventual mudança de governo. “Do ponto de vista político, não muda muito. Não é substancial. Independentemente de qual partido esteja no poder, a política externa deles não costuma variar de forma contundente”, considera.

Esperança de sensibilização

Apesar de considerar que os interesses americanos podem acabar prevalecendo à situação dos quilombolas, Danilo Serejo alimenta uma esperança de que a vitória de Joe Biden acabe promovendo algum tipo de alteração no país que atraia atenções para a comunidade em Alcântara.

“Não se pode negar que uma derrota do Trump quebra a postura do governo brasileiro”, argumenta.
Até o fechamento desta reportagem, o candidato democrata Joe Biden liderava a corrida pelo voto dos delegados com 264 contra 214 de Donald Trump, concorrente à reeleição pelo partido Republicano, e pareciam quase certas suas chances de vitória.

Barbárie

Para Maira Moreira, advogada do movimento Terra de Direitos – organização que atua em “situações de conflitos coletivos relacionados à terra” -, a ação estatal é “barbárie”.

“É um atentado. Num momento de pandemia, o governo não se preocupa em garantir a segurança fundiária”, ataca a jurista.

Segundo ela, há uma seletividade nos porões da Justiça brasileira.

“São dois pesos e duas medidas. O mesmo STF que entendeu que declarações racistas do presidente são ‘liberdade de expressão’, ainda autoriza ações de despejo em meio à pandemia”, queixa-se Moreira.

Há ainda o agravante na jurisprudência do Supremo.

Em maio, a Corte suspendeu ações de reintegração de posse em todo o território nacional – mas apenas em territórios indígenas.

“Seriam 800 famílias despejadas”, contabiliza.

“O governo Bolsonaro editou uma resolução prevendo o plano de remoção e uma consulta aos envolvidos apenas depois de removidos de Alcântara”, contesta a advogada.

Disputa histórica com comunidade

Inaugurada em 1980, a base maranhense trouxe imbróglios já desde o nascimento. Para funcionar, a unidade tomou as casas de 312 famílias, segundo Danilo Serejo.

Ele aponta que não havia, à época da ditadura militar, interesse na demarcação dos territórios e na garantia da posse fundiária às famílias. Em 2003, um novo marco legal atiçou a demarcação das terras dessa população Brasil afora.

Foi por meio do Decreto nº 4.887, no primeiro ano do governo Lula, a demarcação de terras derivadas de quilombos virou obrigação estatal. Ainda assim, a titulação das terras – que dá a posse fundiária às comunidades, último estágio da luta pelo território, só se realiza via decreto do Executivo nacional. Ou seja, do presidente da República. À época, o petista não tomou a atitude final. “O Lula não quis enfrentar os militares e não resolveu a questão, que é central para a gente”, aponta Serejo.

Agora, o horizonte se mostra ainda mais perverso para a população de quilombo. Isto porque a postura de Jair Bolsonaro com relação a este setor da sociedade brasileira é muito menos amigável. Ainda em campanha ao Palácio do Planalto, o então candidato teceu comentários classificados como racistas a respeito dos quilombolas. Em outros momentos, declarou que não demarcaria terras e chegou a atacar os movimentos sociais que pleiteavam a titulação.

Saiba Mais

A Federação Nacional das Associações Quilombolas (Fenaq) impetrou em novembro de 2019 a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 622 no Supremo Tribunal Federal (STF).

O alvo da ADPF eram os “sistemáticos ataque aos Direitos Fundamentais das Comunidades Quilombolas, consequência de atitudes omissivas e comissivas dos poderes públicos da União, dos Estados e no Distrito Federal, (…) no tratamento quanto à demora da demarcação de terras”.

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