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116 anos da Revolta da Vacina: historiadores negam que manifestações atuais sejam iguais às de 1904

“Acredito que questões como a da vacinação, que são de saúde pública, não deveriam ser permeadas por  debates políticos”, afirma o professor Leonardo Pereira

Agência UniCeub

18/11/2020 18h32

Geovanna Bispo e Mayra Christie
Jornal de Brasília/Agência UniCeub

As notícias de desenvolvimento e evolução de uma vacina contra a covid-19 animam parte da sociedade diante do caos e do temor com a doença em meio à pandemia. No entanto, outra parte desconfia da eficácia e não vê possibilidade de buscar a imunização em breve. Apesar dos pontos em comum, como o negacionismo, historiadores não relacionam a Revolta da Vacina, evento histórico no Rio de Janeiro em 1904, com as manifestações contrárias à imunização de hoje em dia.

“Não podemos pensar a história como um tipo de relação direta entre os eventos”, descreve o historiador Marcelo Balaban, professor da Universidade de Brasília. Porém, diante de tantas notícias a respeito de movimentos antivacina no país, podem haver comparações entre os períodos históricos no que se refere à desconfiança, ao medo e ao negacionismo.

“Acredito que questões como a da vacinação, que são de saúde pública, não deveriam ser permeadas por  debates políticos”, afirma o professor Leonardo Pereira, do Departamento de História da PUC do Rio de Janeiro  sobre os crescentes movimentos antivacínicos . O pesquisador é autor do livro As barricadas da saúde: vacina e protesto popular no Rio de Janeiro na Primeira República (Fundação Perseu Abramo, 2002).

Hoje, vive-se uma pandemia causada pelo novo coronavírus, mas há 116 anos o Rio de Janeiro, a então capital do país, enfrentava a varíola. “Foi uma doença que não teve episódios pandêmicos, como agora, em que o mundo todo pegou a doença ao mesmo tempo. O que aconteciam eram epidemias muito sérias em alguns lugares e que matavam muita gente”, explica a pesquisadora Tânia Maria Fernandes, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Na época, cerca de 1,8 mil pessoas estariam internadas nos hospitais da cidade com a doença.

Ainda que existisse uma vacina para a varíola desde 1798, a população ainda desconfiava sobre sua eficácia. “Elas vinham em grandes navios e não era nada refrigerado. Não tinham os testes que temos hoje. Então, tinha uma certa desconfiança com a vacina, que, em grande medida, não funcionava mesmo”, explica Marcelo Balaban.

Segundo o professor, crises sanitárias quase sempre causam desdobramentos sociais. “Hoje em dia nós podemos pensar isso de um caminho diferente, de pensar que essa crise do liberalismo diz respeito também à maneira como as pessoas vão compreender a ciência e a saúde”. No caso da Revolta da Vacina, foram dois possíveis casos.

Regras da vacina

A primeira e mais conhecida mostra que a revolta se iniciou após a publicação de uma proposta de regulamentação da Lei da Vacinação, em 10 de novembro. “A publicação não era oficial, se tratava de uma proposta de regulamentação que estava longe de ser oficializada, mas bastou a publicação deste regulamento para começar a mobilizar as pessoas na rua”, explica Leonardo Pereira.

A obrigatoriedade, em si, já existia desde 1836 para crianças e 1845 para adultos, mas ela não era de fato cumprida. No entanto, segundo Leonardo Pereira, o que essa nova proposta trazia era um reforço para a obrigatoriedade, já que, caso uma pessoa não se vacinasse, não poderia morar em uma casa com cômodos, se apresentar em um emprego público, entre outras coisas. “Era obrigatório que se apresentasse uma certidão para que se pudesse casar, viajar, estudar”, completa Tânia Maria Fernandes.

Nesse sentido, Marcelo Balaban cita o livro do historiador e cientista político, José Murilo de Carvalho, Os bestializados: O Rio de Janeiro e a República que não foi”, para explicar o alvoroço populacional, que, de acordo com ele, seria mais contra a moralidade imposta do que pela vacina. “A obrigatoriedade da vacina, segundo o autor, era diferente. Os agentes de saúde iam de porta em porta com a polícia, entravam na casa das pessoas e davam a vacina. E era exatamente essa ideia, de que os agentes de saúde entrariam na casa das pessoas, que trazia essa revolta contra a moralidade.”

“Para uma mulher ser vacinada, ela tinha que expor alguma parte do seu corpo, um braço, uma perna. Então, tinha uma resistência a essa vacina também naquele momento”, finaliza Tânia Maria Fernandes.

Revolta contra a vacina e algo mais

A outra explicação também não seria diretamente relacionada com a vacina, mas sim com a modernização que o centro da cidade passava. “Ocorriam muitas obras no centro da cidade, uma ideia de modernização, e essas mudanças ocasionaram a retirada de muitos cortiços, muitas casas mais pobres do centro para a abertura de avenidas. Essa população foi sendo jogada para a periferia da cidade, o que causou uma tensão social significativa”, relata Tânia Maria Fernandes.

Marcelo Balaban ainda adiciona que, a obrigatoriedade teria sido o auge para que a população se revoltasse. “As pessoas se revoltaram mais com a destruição do centro do que, de fato, pela obrigatoriedade da vacina. Aí a ideia que da que a obrigatoriedade teria sido o ‘estopim’ para um significado mais amplo.”

“Hoje é diferente”

Hoje, entretanto, o contexto é outro. Para os especialistas, a melhoria na questão sanitária do país e o avanço nos estudos para a produção de uma vacina seriam as principais questões que distanciariam os episódios de 11 a 15 novembro de 1904 e o cenário atual com relação a covid-19.

“Em 1904, o Rio de Janeiro, embora fosse a capital federal e a mais moderna cidade do Brasil, ainda era palco de sucessivas epidemias de diferentes doenças. Você enfrentava não apenas a varíola, mas também a febre amarela, que estava forte ainda na cidade naquele momento, a peste bubônica. Então, é um contexto muito mais intenso de problemas de saúde pública do que o atual”, explica Leonardo Pereira.

O pesquisador também chama atenção à novidade que a vacina representava naquela época. “No contexto de 1904, isso era explicado pela novidade representada pela vacina. Era uma novidade no próprio campo médico, e era algo sobre o qual os homens de letras, os homens de jornal, pouco conheciam. Mas agora, onde não se coloca em questão esse tipo de coisa, (acho que na área médica, hoje, dificilmente alguém se colocaria tão abertamente contra a vacina) o peso maior recai sobre as autoridades públicas que fazem esse questionamento”, completa Leonardo.

Novo viés

Hoje, os especialistas concordam que o contexto envolve um viés mais político que social. “Quando se tem um presidente questionando a necessidade de vacinação é claro que você está legitimado para ter medo daquilo também, ainda mais se você é simpático àquela autoridade”, enfatiza Leonardo Pereira.

Em 1904, os questionamentos e dúvidas com relação à vacinação podiam ser justificados pelos poucos estudos acerca do assunto, entretanto, como explica o pesquisador, hoje, isso não serviria mais como argumento. “O paralelo que isso tem com o presente, de certa forma, é a irresponsabilidade de autoridades sanitárias e políticas, que colocam em dúvida um processo de imunização contra a doença sobre o qual não se tem grandes discussões”, completa o professor.

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