No Brasil, o mercado de vinhos vive uma contradição. De um lado, estão os importadores que cumprem todas as exigências legais, pagam impostos, geram empregos e oferecem garantia de procedência ao consumidor. De outro, cresce a passos largos um comércio paralelo de vinhos contrabandeados, que entram no país sem registro, sem fiscalização e, muitas vezes, sem correspondência entre o rótulo e o que realmente está dentro da garrafa.
Nos últimos anos, a Polícia Federal intensificou operações contra esse tipo de crime. Ações como a “Malbec”, em Santa Catarina, e a “Filoxera”, no Espírito Santo, revelaram esquemas milionários de contrabando de vinhos argentinos. Entre 2020 e 2024, mais de R$ 250 milhões em garrafas ilegais foram apreendidos — e ainda assim o número representa apenas uma fração do que circula no país. Estimativas indicam que o mercado clandestino possa ultrapassar R$ 2 bilhões por ano, valor superior às importações legais de muitos países fornecedores.
O impacto vai além do descaminho fiscal. Muitas dessas garrafas beiram a falsificação. Rótulos de Bordeaux, Champagne ou Rioja podem esconder líquidos sem qualquer relação com a origem declarada. Casos internacionais já escandalizaram o setor, como o do falsificador Rudy Kurniawan, condenado nos Estados Unidos por recriar vinhos icônicos, ou a operação na Espanha que desbaratou uma rede que exportava falso Rioja para a Ásia. O Brasil não está imune: com impostos altos e fiscalização frágil nas fronteiras, o terreno se mostra fértil para essas práticas.
Nesse cenário, o “contatinho do WhatsApp” virou símbolo de ilegalidade. Ofertas de vinhos argentinos, champanhes franceses e ícones chilenos ou portugueses circulam em grupos fechados a preços tentadores — mas sem nota fiscal, sem selo de importadora e sem qualquer garantia de autenticidade. O problema não se limita a consumidores em busca de economia. Pessoas de alto poder aquisitivo, interessadas em impressionar amigos e clientes, também alimentam esse mercado paralelo.
Lembro de uma cena reveladora: em uma reunião na casa de conhecidos, encontrei pilhas de caixas de vinhos renomados — argentinos celebrados, champanhes de luxo, Bordeaux prestigiados e garrafas portuguesas. Nenhuma delas trazia referência a importadoras brasileiras. Era o retrato do consumo ostentatório, em que o rótulo fala mais alto do que a procedência, e o status vale mais do que a garantia de autenticidade.
As consequências são amplas. Importadores sérios, já pressionados por margens estreitas, não conseguem competir com preços que ignoram impostos e custos logísticos. O Estado deixa de arrecadar, o consumidor perde segurança e as próprias marcas veem sua credibilidade corroída. Afinal, como confiar em um vinho que chega por rotas obscuras e pode não ser o que promete o rótulo?
O alerta já chegou ao cinema. O documentário Sour Grapes detalha o caso de Kurniawan e mostra como até grandes colecionadores podem ser enganados. A mensagem é direta: ninguém está livre do risco, mas há formas de se proteger. A principal é simples — verificar sempre se a garrafa traz contra-rótulo de uma importadora brasileira registrada, garantia mínima de que o produto entrou no país legalmente e passou por controles básicos.
O vinho é mais do que bebida: é cultura, tradição e prazer compartilhado. Reduzi-lo a um rótulo barato e de origem duvidosa é empobrecer a experiência e trair a confiança que ele representa. O contrabando pode até parecer uma pechincha no primeiro gole, mas o sabor amargo vem depois — e atinge a todos.