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Vinhos e Vivências
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NORTE ADRIÁTICO: onde o vinho atravessa fronteiras

Começa hoje uma série em quatro partes sobre os vinhos que unem Itália, Eslovênia e Croácia

Cynthia Malacarne

11/07/2025 12h52

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Foto: Brda, Eslovenia/ Cynthia Malacarne

Nesta série especial, que será publicada ao longo das próximas semanas, convido você a embarcar comigo em uma jornada pelas colinas e vales do Norte Adriático — uma região onde o vinho fala mais alto do que as fronteiras e onde a história, mais do que a geografia, dita o tom da viticultura.

A expressão “Norte Adriático” não é apenas geográfica. Ela é também cultural, histórica e emocional. O termo foi defendido pelo jornalista e escritor Paul Balke, autor do livro North Adriatic, que propõe a unificação simbólica de territórios hoje divididos entre Itália, Eslovênia e Croácia, mas que compartilham a mesma alma vitivinícola. Segundo Balke, essa região abriga um dos terroirs mais completos da Europa, com solos diversos, clima equilibrado e uma cultura milenar do vinho que sobreviveu a séculos de guerras, impérios e transformações. O convite para explorar esse território partiu do próprio autor, que organizou o roteiro e proporcionou experiências únicas por essas terras tão conectadas pelo vinho.

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Foto: Paul Balker, jornalista e escritor do livro North Adriatic: Friuli-Venezia Giulia/ West Slovenia/ Istria. Foto: Cynthia Malacarne

Minha viagem começou em Roma, de onde segui de trem até a cidade de Cormons, no coração do Collio, na região italiana de Friuli-Venezia Giulia. Bastaram 15 minutos de carro a partir dali para cruzar uma fronteira quase invisível e chegar a Medana, na região eslovena de Brda. A sensação é de estar numa estrada rural qualquer, mas, na verdade, estamos atravessando séculos de disputas territoriais. Em Medana, visitei a vinícola Šibav, pertencente à mesma família desde 1680. Durante a degustação, o proprietário, Meran, compartilhou uma história curiosa: seu pai nasceu na casa quando o território era da Iugoslávia; ele próprio nasceu quando a região era italiana; e sua filha nasceu sob a bandeira da atual Eslovênia. Três países diferentes para um mesmo lugar — mas o idioma, a culinária e o modo de fazer vinho permaneceram os mesmos.

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Fotos: Grupo de jornalistas internacionais com os produtores Meran e Ljuba da vinícola Sibav, em Brda. Foto: Cynthia Malacarne

Essas transformações políticas e culturais ajudam a entender por que o Norte Adriático não se define por fronteiras, e sim por colinas, castas autóctones, solos antigos e uma tradição compartilhada.

Collio e Brda: vizinhos que falam a mesma língua da vinha

As colinas de Collio, na Itália, e Brda, na Eslovênia, formam uma continuidade natural. Ambas repousam sobre um solo conhecido como ponca (ou flysch), uma combinação de marga e arenito que armazena bem a água e confere mineralidade aos vinhos. É nesse cenário que se destacam as uvas brancas autóctones da região: Ribolla Gialla (conhecida como Rebula na Eslovênia), Friulano (também chamado de Sauvignon Vert, anteriormente Tocai), Malvasia Istriana e a delicada Picolit. Entre as tintas, brilham castas locais como Refosco, Tazzelenghe e Pignolo, além das internacionais Merlot, Cabernet Sauvignon e Cabernet Franc.

As uvas brancas internacionais também têm espaço — como Pinot Grigio, Sauvignon Blanc, Pinot Bianco e Chardonnay. Mas o que realmente chama atenção é o movimento dos vinhos brancos macerados, os famosos orange wines, que surgiram com força na Eslovênia e se expandiram pelas colinas italianas. A Ribolla Gialla, quando vinificada com as cascas, ganha estrutura e profundidade que desafiam o paladar e encantam quem busca autenticidade.

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Foto: Collio, Friuli. Foto: Cynthia Malacarne

Ístria: uma península, três territórios

A Ístria é uma península geograficamente única, repartida entre três países: Croácia, que detém a maior parte, Eslovênia e um pequeno trecho da Itália. A região carrega marcas profundas da história: foi domínio do Império Veneziano (na parte croata), depois do Império Austro-Húngaro, passou pelo Reino da Itália e pela Iugoslávia, até chegar à configuração atual.

Essas camadas históricas moldaram o idioma — muitos ainda falam italiano ou dialeto vêneto, especialmente no lado croata —, a gastronomia, fortemente influenciada pela cozinha italiana, especialmente do Vêneto, e, claro, a viticultura.

Na Ístria croata, o solo é um tesouro. Três grandes tipos se destacam: o solo vermelho (terra rossa), rico em óxidos de ferro e excelente para tintos estruturados; o solo cinza, composto por marga e arenito, semelhante ao flysch ou ponca de Collio e Brda, ideal para vinhos equilibrados e aromáticos; e o solo negro, mais fértil, que gera vinhos com frutas exuberantes e taninos macios.

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Foto: Solo vermelho, em Istria Croacia. Foto: Cynthia Malacarne

Entre as uvas autóctones, brilha a branca Malvasia Istriana, cultivada desde o século XIII e capaz de expressar com precisão as nuances de cada tipo de solo. Em áreas mais frescas, revela mineralidade e acidez; em solos mais ricos, mostra estrutura e notas tropicais. Já a tinta Teran é o verdadeiro ícone da Ístria. Documentada desde 1390, chegou a representar 80% das vinhas da região no século XIX. Seus vinhos são intensos, com acidez viva, taninos firmes e notas de frutas escuras e especiarias — uma joia ainda pouco conhecida fora da Europa Central.

Claro que castas internacionais como Merlot, Cabernet Sauvignon, Pinot Noir e Chardonnay também têm presença, mas é na expressão das variedades locais que a Ístria mostra sua identidade mais autêntica e singular.

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Foto: Istria Croacia. Foto: Cynthia Malacarne

Uma região, muitos sotaques — um só vinho

O que une Collio, Brda e Ístria vai além da proximidade geográfica. É a cultura compartilhada do vinho, a convivência entre línguas, a história de famílias que atravessaram impérios e permaneceram enraizadas em suas vinhas. O clima do Norte Adriático, influenciado pelas brisas do mar e pelas correntes frias dos Alpes, favorece maturações lentas e equilibradas, com expressão aromática refinada. A diversidade de solos em uma área tão compacta faz dessa uma das regiões mais complexas e instigantes da vitivinicultura europeia.

Neste primeiro artigo, apresento o pano de fundo histórico e cultural desse território fascinante. Nas próximas semanas, vou me aprofundar em cada uma das áreas — Collio/Friuli, Eslovênia e Croácia — com detalhes sobre produtores, degustações e as experiências que vivi. Uma verdadeira jornada enológica por uma terra onde o vinho não reconhece fronteiras.

Acompanhe.

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