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Três Poderes
Três Poderes

É preciso enfrentar toda a tentativa de discriminar seres humanos

Deputada Erika Kokay destaca seus projetos e fala sobre a sua trajetória na defesa dos direitos humanos e da justiça social

Marcelo Chaves

29/07/2025 13h03

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Foto: Divulgação

Nossa entrevista é com a parlamentar Erika Kokay (foto). Psicóloga e bancária, ela está em seu quarto mandato de deputada federal. Erika também foi, por dois mandatos, deputada distrital, além de presidente do Sindicato dos Bancários do Distrito Federal, da CUT-DF e do PT-DF. Na conversa que teve com o Jornal de Brasília, ela fala sobre os desafios enfrentados como parlamentar, seus projetos e sua trajetória na defesa dos direitos humanos e da justiça social.

Com base na sua trajetória como ex-presidente do Sindicato dos Bancários de Brasília e da CUT do Distrito Federal, como a senhora avalia hoje o impacto das mobilizações sindicais frente aos desafios da automação e da precarização do trabalho?

São desafios que exigem a necessidade de adaptação às novas demandas da classe trabalhadora. O movimento sindical nasce da luta por direitos e contra a precarização do trabalho. Então, a construção deste processo é natural, mas não automática. Nós, por exemplo, temos construído um bom diálogo com os entregadores e entregadoras por aplicativo. Sou autora do Projeto de Lei 2621/2024, para classificar como “acidente de trabalho” os acidentes de trânsito sofridos por estes e estas profissionais, e tenho proposto e participado de debates, dentro e fora do Congresso Nacional, sobre o tema. É especial que, hoje, discussões como a redução da jornada de trabalho sem redução de salários e o fim da tenebrosa Escala 6×1 tenham grande potencial mobilizador na sociedade brasileira. Essa luta tem todo o meu apoio. No meu gabinete na Câmara Federal, inclusive, há uma urna para quem queira votar no Plebiscito, que aborda a diminuição da jornada e a taxação dos super-ricos como instrumento de mobilização social. A vida não é só trabalhar, como nos lembrou o inesquecível Pepe Mujica. O direito ao tempo é resgatar a nossa própria humanidade e a nossa subjetividade, ameaçada constantemente por um sistema que nos vê como coisas e que não nos quer humanos.

O projeto de lei que propõe o piso nacional para assistentes sociais avançou em comissões com seu apoio, mas enfrenta resistência devido às restrições fiscais. Que estratégia a senhora enxerga para viabilizar sua aprovação no plenário em meio às limitações orçamentárias do pós-pandemia?

Penso que é preciso combinar mobilização social com articulação política, racionalidade técnica e disputa de modelo de financiamento público. Como falar em restrições fiscais como argumento para impedir o piso dos assistentes sociais e cercear políticas públicas se hoje no Brasil temos mais de R$ 800 bilhões de benefícios fiscais a empresas sem que elas precisem dar alguma contrapartida ao país?
Hoje, os dados da Receita mostram que os super-ricos no Brasil pagam menos de 3% de imposto sobre a renda. É uma distorção inaceitável. Por isso, minha luta – e a do presidente Lula – é para que os mais ricos paguem imposto de acordo com sua capacidade contributiva e que tenhamos um país mais justo e igualitário, com um Estado que enfrente as desigualdades e melhore a vida da maioria da população. A responsabilidade fiscal passa por enfrentar privilégios e garantir receitas para políticas sociais e pautas prioritárias, como é a valorização dos e das assistentes sociais. Estamos falando de profissionais que lidam com um Brasil invisibilizado e que lutam para assegurar direitos básicos, cidadania e a própria humanidade da população brasileira. Sob os escombros de uma sociedade muito desigual e com muita discriminação, os e as assistentes sociais vão puxando os fios de vida e construindo uma nova realidade para milhões de brasileiros e brasileiras. Essa pauta não pode ficar em último lugar da fila. 

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Foto: Divulgação

O crescimento de discursos autoritários e polarizadores no Brasil tem afetado o ambiente escolar. Que propostas concretas a senhora apoia para garantir a liberdade de expressão e preservar uma educação plural, livre de iniciativas como a chamada escola sem partido?

A política de educação precisa ser valorizada, e isso pressupõe valorizar, de forma muito intensa, os e as profissionais da educação. Tem razão a canção quando diz que é na sala de aula que se constrói um cidadão e uma cidadã, e que é ali que se constrói uma nação. Não é à toa que o fascismo sempre tenta calar a educação e a consciência crítica, que nos fazem avançar no desenvolvimento humano a partir da construção de sínteses, que nascem, justamente, da discussão do contraditório. A escola não se trata de uma transmissão hierarquizada de conteúdos, e sim de um espaço onde a liberdade e a diversidade humana possam se expressar. Tem razão Paulo Freire quando diz que ninguém nasce feito e que a gente “vai se fazendo”. Somos fruto do chão que pisamos e dos territórios onde vivemos. O que se busca fazer, ao calar a escola, é impedir esse espaço generoso de construção de humanidade, de consciência crítica e de diálogo permanente com outras políticas públicas. A chamada “Escola Sem Partido” é, na verdade, uma escola amordaçada. Por diversas vezes, cheguei na Câmara Federal de madrugada para impedir que este projeto fosse aprovado. E conseguimos.

Relacionando sua defesa da democracia e sua participação na Comissão da Verdade com os recentes episódios de negação da suposta tentativa de golpe de Estado, quais são, na visão da senhora, os principais desafios para preservar a memória histórica dentro do Congresso e nas políticas públicas brasileiras?

Infelizmente, até agora, nossa história tem sido a de mudanças com conciliações e impunidades. O Brasil não fez o luto dos seus períodos traumáticos, como o colonialismo, a escravização e a ditadura militar. Os torturadores e assassinos de Rubens Paiva, por exemplo, não foram julgados e punidos. É preciso fechar esses ciclos, não permitindo que isso aconteça novamente com uma anistia aos envolvidos na tentativa de golpe contra a democracia e o resultado eleitoral de 2022. Estamos falando de golpistas que tentaram explodir bombas nas proximidades do Aeroporto de Brasília, quase assassinaram policiais, invadiram e depredaram sedes dos Poderes, orquestrados, de acordo com a Polícia Federal, com quem planejava assassinar Lula, Alckmin e o então presidente do TSE. Tudo isso não pode ser naturalizado. Além de punir golpistas, o Brasil precisa valorizar a memória, sem a qual não se resgata a história. Um povo sem memória é um povo que não reconhece a sua história e não consegue identificar seus momentos de dor para que eles não se repitam. O Brasil precisa de uma radicalidade democrática, fortalecer instrumentos como a Comissão Nacional da Verdade e lutar contra o autoritarismo, em todas as suas expressões e em todos os espaços em que ele tente se impor. Por fim, fortalecer a democracia é, sobretudo, avançar na construção de um país soberano, livre da fome, de todas as formas de opressão, que garanta a liberdade, direitos e justiça social, ambiental e tributária para todo o seu povo. Anistiar golpistas é fortalecer o manto cruel da impunidade. Por isso, é sem anistia para golpistas!

Sua reeleição em 2022 consolidou votos em regiões do Distrito Federal com Índice de Desenvolvimento Humano médio e alto. Como a senhora pretende ampliar sua atuação junto às áreas mais vulneráveis, equilibrando a representação social e territorial?
 
O exercício de um mandato não pode ser um fim em si mesmo. Não pode ser calculado com base no retorno de votos que ele possa trazer, mas sim pelo compromisso com a transformação da sociedade e com a elevação da dignidade humana. Essa compreensão faz com que meus mandatos tenham história de uma atuação intensa em todas as lutas na maior parte dos territórios do DF. Sempre enfrentei todas as violações de direitos e estive ao lado dos movimentos sociais e populares nas lutas por moradia, na valorização da cultura das periferias, pela agricultura familiar, dentre outras. É difícil ver um movimento no Distrito Federal, que represente uma população muitas vezes invisibilizada, que não conte com o meu apoio. Em 2026, completo 50 anos de luta. Desde o enfrentamento à ditadura, no movimento estudantil ao movimento sindical, estive em várias trincheiras, sempre lutando por democracia, liberdade e direitos. Como dizia Mandela, a gente mede a qualidade das nossas vidas por quanto ela contribui para transformar para melhor a vida de todas as pessoas. E tenho consciência que lutar, lado a lado, às populações mais oprimidas ajuda a transformar vidas e que o meu mandato está umbilicalmente ligado a todos os movimentos em defesa dos direitos.

Na Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado, a senhora tem defendido políticas alternativas. Que medidas concretas acredita serem capazes de conciliar segurança pública, justiça social e redução do encarceramento?
 
A segurança pública se faz combatendo a impunidade, responsabilizando as pessoas que feriram a lei e valorizando as forças e os e as profissionais da área. Mas a segurança não pode ser a única forma do Estado chegar no Brasil invisibilizado. Lembro muito da fala de um representante da área que dizia que a segurança pública acaba por enfrentar a falência de uma série de outras políticas públicas. Em Medellín, na Colômbia – que já foi considerada a cidade mais violenta do mundo – o governo levou infraestrutura, educação, cultura e mobilidade para os bairros mais vulneráveis. Criaram-se bibliotecas-parques, áreas de lazer, acesso à saúde e transporte. O resultado foi uma queda real e sustentável da violência. É preciso pensar as políticas públicas de forma integrada. O Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo e não há sensação de segurança na sociedade. Aqui prende-se muito e prende-se mal. As prisões, via de regra, são espaços de profundas violações de direitos, não cumprindo a sua função de proporcionar a interrupção da vida delituosa e a ressignificação de trajetórias, mostrando seu fracasso em um alto índice de reincidência. É preciso aumentar o índice de resolutividade, investir em inteligência e em um sistema de dados unificado na maior integração entre as diversas esferas do Estado para enfrentar criminalidade de maneira eficaz, respeitando os direitos e a dignidade humana, como prevê a PEC da Segurança do governo Lula.
 
Como psicóloga e com longa atuação no movimento sindical, de que forma a senhora integra o conhecimento sobre saúde mental no diálogo político, especialmente diante das consequências da pandemia e da polarização que afeta as relações sociais?
 
O Brasil precisa reconhecer seus holocaustos para impedir que eles se repitam. Os navios negreiros foram um deles, e os manicômios também. A experiência do que representou o Hospício de Barbacena, com dezenas de milhares de pessoas mortas e a utilização de choques elétricos em larga escala, mostra a necessidade de construirmos o cuidado em liberdade, que é terapêutica. Nós temos que lembrar que o Brasil é país de Nise da Silveira, que dizia “choque eu não aplico”. Temos uma legislação que estabeleceu a reforma psiquiátrica no Brasil e, no DF, um Plano Diretor para a Saúde Mental desde 1995. Precisamos de mais CAPs e de incluir a atenção à saúde mental na estratégia de saúde da família, além de ampliar outrosserviços substitutivos, como residências terapêuticas, centros de convivência e de uma série de instrumentos que substituam a lógica manicomial, que segrega e anula qualquer humanidade e identidade. Meu mandato tem uma atuação permanente e articulada com os movimentos sociais para implementarmos a reforma psiquiátrica e a lógica antimanicomial no DF e no Brasil.

A senhora tem sido uma voz ativa na defesa dos direitos da população LGBTQIA+, destacando avanços e alertando para riscos de retrocessos. Combate à chamada cura gay, enfrentamento da violência institucional e baixa empregabilidade entre pessoas LGBTQIA+, especialmente no mercado de trabalho e nas escolas, são temas recorrentes em sua atuação. Quais medidas legislativas e políticas públicas a senhora considera prioritárias hoje para garantir inclusão, segurança e igualdade plena para essas comunidades?

 Nós lutamos por um país sem senzalas, manicômios e armários, onde a liberdade seja plena e exuberante. Nós não podemos permitir que exista uma hierarquização dos seres humanos e que as pessoas não possam expressar sua orientação sexual, sua identidade de gênero e a sua afetividade. É preciso enfrentar toda a tentativa de discriminar seres humanos, impedindo que alguns possam ter a liberdade de ser e amar e ter o direito à cidade, e outros não. Nós temos resistido a inúmeras tentativas de retrocessos. Como é possível que a chamada “Cura Gay” tenha entrado em discussão na Câmara? Não existe cura para o que não é doença. A diversidade sexual faz parte da história da própria humanidade. Os fundamentalistas também quiseram impor o Estatuto da Família, que admitia apenas um tipo de família, composta por homem, mulher e seus dependentes, quando, na verdade, existem diversas expressões familiares, que também merecem respeito e o direito de existirem e expressarem a sua amorosidade. Mais recentemente, quiseram retroceder na decisão do STF que garantiu o casamento homoafetivo. Decisão, aliás, que existiu porque o Congresso Nacional não deu vazão a esta construção. A sociedade avança como um rio que corre para o mar. Quando as águas são, por alguma maneira impedidas, a sua força faz com que busque outros caminhos. E o STF foi um desses caminhos. Meu mandato teve atuação neste processo, com muitas discussões com os ministros sobre a necessidade, do reconhecimento do casamento homoafetivo, da criminalização da LGBTfobia e da inconstitucionalidade da lei que só admite um tipo de família. Da mesma forma que, cotidianamente, busco políticas afirmativas para assegurar os direitos da população LGBTQIA+.

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