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Pense Direito

A criminalização do setor empresarial em razão da ineficiência e inoperância do Estado

Talvez o título desta matéria seja um tanto quanto exagerado ou carregado de uma metáfora que assola e tem tirado o sono de todo um setor produtivo.

Franco Júnior

19/03/2020 14h14

O fato é que, no dia 18 de dezembro de 2019, no RHC 163.334, por maioria, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, decidiu que o contribuinte que deixar de recolher ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço, mesmo que tenham sido registrados regularmente nos livros fiscais, incide no tipo penal do artigo 2º, inciso 2, da Lei nº 8.137.

A Suprema Corte trouxe novamente ao debate jurídico se a jurisdição do Direito Penal pode alcançar a inadimplência do contribuinte e considerar crime, mesmo que o débito tenha sido declarado ao Estado pelo sujeito passivo através da escrita fiscal.

O ICMS é a principal fonte de receita dos Estados, pois é cobrado pela movimentação de mercadorias e serviços, devendo ser recolhido e repassado ao Estado por uma empresa na venda de algum produto ou serviço (específico deste imposto), geralmente por uma alíquota excessivamente alta.
O bojo da decisão traz consigo as expressões “devedor de forma contumaz” e “com dolo de apropriação”, como núcleos verbais para caracterização do delito.

Ocorre que, na prática, a inclusão de tais expressões/situações não conduz ao verdadeiro veredicto de Justiça e faz com que, muitos empresários que se desfortunaram na missão de manter uma atividade empresarial engessada pelo Estado, que exacerba o custo de qualquer operação com centenas de obrigações no campo fiscal, regulatório, burocrático, dentre tantos outros entraves, acabem respondendo criminalmente por uma conduta até então atípica ao Direito Penal.

Apesar das ressalvas nos votos dos Ministros, o fato é que foi decidido que é crime não pagar o ICMS, mesmo que declarado. O que trouxe de novo ao mundo jurídico e empresarial é que se trata de crime mesmo aquela obrigação declarada na escrita fiscal do contribuinte. Ou seja, o contribuinte declarou o débito. Não houve ocultação de receita ou faturamento. Não houve fraude fiscal. Não houve adulteração da escrita fiscal. Não houve a inserção de dados falsos ou falsificação de documentos.

A caracterização pelas expressões “devedor de forma contumaz” e “com dolo de apropriação” tornam o fato típico aberto ou sujeito à interpretação, seja da autoridade policial para abertura do inquérito policial, seja do Judiciário no julgamento da Ação Penal.

Geralmente agentes públicos altamente capacitados juridicamente para a análise de qualquer situação que configure crime, lhes faltam a experiência do que é gerir uma empresa em nosso País, diante das inúmeras ineficiências do Estado, para atestar a conduta e enquadrar nos novos parâmetros do STF.

Dificuldades estas que geram deficiência de caixa, atraso de salários, impontualidade no recolhimento de tributos, litígios com fornecedores, multas de órgão regulatórios, situações do cotidiano empresarial que poderão, através de uma interpretação equivocada, serem consideradas abarcadas pela decisão como “devedor contumaz” e “com dolo de apropriação”.

Aparentemente foi criado um novo tipo penal, com um novo núcleo verbal de conduta, utilizando-se de previsão legislativa que trata a matéria de forma totalmente diversa.

Sob a ótica do recolhimento do tributo, com base em todo este imbróglio jurídico causado pela decisão da Suprema Corte que poderá banalizar a conduta de inadimplência transformando-a em crime, o mesmo Tribunal que em vários julgamentos considerou ilegal a conduta do Estado ao adotar meios coercitivos indiretos como forma de cobrança de tributos, possivelmente tenha chancelado o que os doutrinadores, e o próprio STF já considerou, como Sanção Política em Matéria Tributária.

É bem verdade que tal discussão não foi ventilada, tampouco se insurgiu no debate, seja pelas partes ou pelos próprios julgadores.

Ocorre que a própria legislação, também com a chancela do Judiciário, extingue totalmente a punibilidade ou a própria Ação Penal, caso o contribuinte venha a realizar o pagamento do tributo, isto em qualquer fase do processo.

Desta forma, a decisão do STF ao considerar crime o inadimplemento declarado pelo contribuinte, ausente de qualquer fraude ou ocultação de receita ou faturamento, além de abrir uma perigosa janela para banalização e criminalização sintomática de todo um setor produtivo que luta pela sua sobrevivência sem que, tenha de fato, incorrido em qualquer crime caracterizador da apropriação indébita ou sonegação, permite ao Estado compelir o contribuinte – naqueles casos em que os mesmos detém condição – a pagar um tributo de forma indireta, para fins de eliminar os riscos, mazelas e consequências de responder um processo crime.

É como se o empresário fosse ameaçado de responder um processo crime, caso não pague ou recolha o tributo. Se pagar, não tem sanção penal.

É mais uma forma para compensar a ineficiência do Estado, em um sistema tributário complexo e inoperante.

O fato é que tal decisão está longe de sanar qualquer problema na seara do recolhimento de tributo, tampouco causar qualquer forma de redução ou eliminação na inadimplência do setor empresarial.
Criminalizar a conduta do contribuinte que declara o imposto e não recolhe por dificuldades impostas pelo mercado, setor, época, burocracia, crise financeira, ou qualquer outra celeuma dentre tantas que qualquer empresário está sujeito, poderá instigar a ocultação na escrita fiscal para fins de evitar sua penalização. Poderíamos adentrar na discussão dos princípios da criminologia, e a função das sanções penais, mas aí é assunto para outro café.

O tema gerou tanta controvérsia que já é objeto de projeto de lei (PL 6520/2019), apresentado pelo Deputado Alexis Fonteyne (Novo-SP), que visa justamente elidir a responsabilidade penal do contribuinte que tenha registrado regularmente seus livros fiscais.

Com tudo isso, a conclusão é que o cerne da questão está na inoperância e ineficiência do Estado no recolhimento dos tributos e não propriamente na conduta do empresário. Mas o preço quem paga é a sociedade.

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