Há visitas que não podem ser adiadas.
Nem sempre sabemos quando será a última vez que veremos alguém. Mas, quando percebemos — ou mesmo suspeitamos — que o tempo está se esgotando, o gesto de visitar ganha outra dimensão. Torna-se um ritual de presença profunda.
É natural sentir receio: o medo de não saber o que dizer, de ser inconveniente, de se emocionar demais… Tudo isso faz parte. A ideia da finitude nos desorganiza. Mas estar com alguém que se aproxima do fim não exige respostas — exige entrega. Disponibilidade interior. E algo raro nos dias de hoje: desacelerar.
Essas visitas não combinam com celular vibrando, compromissos em sequência ou pressa para sair. Combinam com chá quente, cadeira puxada devagar e escuta atenta. Muitas vezes, também com trocas de perdão — para que a última travessia da vida aconteça com leveza na alma.
Estar com alguém no fim é aceitar que chegar ao fim é parte do ciclo. Não precisa ser visto como um monstro, embora por dentro o coração sofra essas “mordidas” silenciosas. O tempo escorre como tem que ser, no ritmo de cada um — seja sob a fé na natureza, seja na vontade de Deus, como dizem tantos.
Às vezes, tudo o que a pessoa precisa é saber que alguém veio. E ficou. Mesmo sem falar muito. Mesmo sem saber exatamente como agir.
Evite frases prontas. Não tente animar quem já não tem forças ou vontade de sorrir. Aceite a tristeza do momento. E, em vez de distração, ofereça presença. Ofereça o que você tiver de mais honesto naquele dia: sua empatia, seu “ficar”.
Se houver intimidade, segure a mão. Já segurei muitas, em minha jornada profissional — e foi bom. Senti gratidão por estar ali, naquele instante precioso. Um privilégio raro. Assim como ao nascer nos tornamos gente, ao morrer também revelamos algo profundo sobre o que é ser humano: vulnerável, finito. Porque todos, um dia, teremos nosso fim — mesmo que “a indesejada das gentes”, como escreveu Manuel Bandeira, continue sendo evitada por uma sociedade que idolatra a juventude e se recusa a aceitar o envelhecimento e a morte.
Vivemos em um mundo onde ressuscitam uma senhora de 90 anos com Alzheimer avançado, após uma parada cardíaca, mesmo que isso signifique mais alguns dias solitários em uma UTI, ligada a aparelhos, longe dos afetos. É sobre isso que precisamos falar — com coragem e verdade.
Ao chegar, não imponha alegria. Mas distribua leveza. Há uma enorme diferença entre tentar distrair e conseguir acalmar. Pergunte: “Quer que eu leia algo?” ou “Posso só ficar aqui com você?”. Não subestime o poder do silêncio partilhado. Ele pode ser mais eloquente do que qualquer conversa.
Evite transformar a vida da pessoa em um inventário de conquistas. Dizer que ela “cumpriu sua missão” ou “vai descansar” pode soar insensível para quem ainda luta por dignidade até o último instante. Se quiser trazer memórias felizes, espere que a pessoa abra esse espaço — e então sorria junto, viva com ela as epifanias que surgirem.
Cada pessoa vive o fim de um jeito. Algumas falam, outras se recolhem. Algumas querem rir, outras se despedir. Há quem deseje música, há quem precise de silêncio. Acolha. Respeite.
Se a pessoa disser que está cansada, que sente que está indo, não fuja do assunto. Não é hora de fingir que está tudo bem. É hora de escutar de verdade. Apenas diga: “Estou aqui com você.” Isso basta. E vale muito.
Se for levar algo, leve com delicadeza: um bolo simples, um pão macio, uma flor plantada. Algo que possa ser partilhado naquele momento, que ajude a cuidar — mesmo que seja para uma despedida. Evite presentes que se tornem lembranças dolorosas. Objetos como porta-retratos ou almofadas bordadas, por mais bem-intencionados, podem pesar para quem fica. O efêmero é mais adequado. Porque tudo ali está se tornando quase vento. Indo. Terminando. Na efemeridade de existir — e de deixar de ser.
Se a pessoa estiver inconsciente, vá mesmo assim. Toque sua mão. Leia um poema. Coloque uma música. O corpo escuta. O afeto atravessa a pele. E, mesmo que ela não compreenda com clareza, quem fica se transforma com essa presença.
Não vá esperando gratidão. Vá porque é o certo. Porque amar é permanecer. É estar. Mesmo quando não há mais nada a fazer. Mesmo quando o outro já não consegue dizer o quanto aquilo significa.
Evite falar sobre bens, testamentos, viagens futuras. O agora é sagrado. Quem parte não precisa ser lembrado de sua ausência iminente — precisa ser incluído. Precisa se sentir amado.
Se ainda for possível, diga com carinho: “Quando quiser e puder, queria te levar para ver o céu. Ou tomar um café… Ou visitar fulano.” Mesmo que o passeio nunca aconteça, o convite reafirma o afeto. Reforça que há vida até o último suspiro. Que vínculos seguem existindo. E são mágicos.
Estar com alguém que está partindo reorganiza tudo o que antes julgávamos importante. De repente, o essencial se revela: o toque, o olhar, o tempo entregue. A gente se transforma. Fica mais humilde. Percebe o quanto somos frágeis num universo em que até as estrelas morrem. E começa a se questionar: por que exigimos tanto? Por que cobramos tanto? Por que queremos tanto? No fim, tudo fica. A gente vai. Só levamos o amor vivido — e os momentos partilhados.
Depois da visita, não leve culpa. Leve reverência. Você esteve. Você foi. Você ficou. Visitar alguém no fim da vida é como assistir a um pôr do sol sem tirar foto: apenas estando. Sentindo. Como uma pintura impressionista: de perto, tudo parece confuso. De longe, faz sentido. A beleza está no conjunto — mesmo com sombras. A vida é assim: um emaranhado de instantes que só fazem sentido quando respiramos fundo e olhamos de longe.
Visitas no fim da vida são gratuitas, silenciosas, despretensiosas. E, por isso, inesquecíveis. Se um dia alguém se lembrar de você como aquela pessoa que segurou mãos quando tudo parecia escapar… saiba que você fez algo grandioso. E que, possivelmente, tenha inspirado outra pessoa a fazer o mesmo.
Pouca gente sabe, mas a ideia de plantar uma árvore, ter um filho e escrever um livro veio de José Martí, o pai da independência de Cuba. São gestos simbólicos de continuidade. De deixar pegadas suaves, que não ferem o chão — mas o fertilizam.
Mesmo que não tenhamos filhos biológicos, podemos gerar projetos, laços, memórias. Mesmo que nunca publiquemos um livro, podemos deixar cartas, áudios, bilhetes, palavras ditas no tempo certo. Mesmo que nunca plantemos uma árvore, podemos cultivar cuidado, amizades e solidariedade.
Viver bem é viver com responsabilidade pelo mundo que fica. Isso é profundamente humano — e profundamente belo.
Porque no fim, se deixarmos boas sementes, talvez esse fim nem exista. O que haverá será continuidade. E presença eterna.
Dedicado a todos os profissionais das equipes de cuidados paliativos do Brasil, e a todos que cruzaram meu caminho e deixaram valores que guiam minha vida e minhas escolhas. Ao querido Dr. Drauzio Varella, autor do primeiro livro que li sobre cuidados no fim da vida — Por um Fio (2004) —, que marcou minha trajetória profissional para sempre. E, em especial, à Dona Naly de Sá Roriz Rivera, minha paciente, mãe de cinco filhas, esposa de engenheiro, poeta e tradutor. Uma grande mulher até seus últimos meses de vida, quando me ensinou algumas das lições mais profundas sobre a fragilidade — e a grandiosidade — da existência, sobre momentos, sobre o que realmente importa, e sobre resiliência.
Consoada
Quando “a Indesejada das gentes chegar”
(Não sei se dura ou caroável),
Talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
— Alô, iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite com seus sortilégios).
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.
(Manuel Bandeira, 1966)