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Envelhecer é uma arte
Envelhecer é uma arte

Quando o fim de ano revela o cuidado que estava invisível

Um convite para enxergar, com mais calma e menos culpa, as mudanças do envelhecer e o cuidado silencioso que tantas famílias vivem sem perceber

Juliana Gai

30/12/2025 13h36

senhora invisível

Foto: Criada por IA

O fim de ano e as férias que se seguem não revelam só presentes. Revelam também as dependências e as fragilidades que passaram despercebidas durante meses. Revelam o corpo idoso falando mais alto quando a convivência se alonga e a pressa dá trégua.

Natal, Ano Novo e férias têm esse efeito curioso: desaceleram o tempo. E, quando o tempo desacelera, a gente vê melhor. Convive mais. Vê quem levanta com dificuldade, quem se desequilibra ao caminhar, quem se confunde na conversa, quem esquece o que acabou de dizer, quem está assistindo televisão num volume insuportavelmente alto ou quem parece pouco conectado ao contexto das mesas familiares de refeição. Não é exagero. Não é drama. É observação, algo que o resto do ano quase nunca permite. Afinal, todos têm muita pressa. A vida, hoje em dia, é exageradamente urgente. É “uma loucura”, como dizem usando este termo bem pejorativo, mas que não deixa de expressar certa “loucura” dentro das nossas cabeças lotadas de pensamentos, tarefas, contas, reuniões, problemas de saúde, responsabilidades de adulto em geral ou mesmo dentro dos nossos celulares abarrotados de aplicativos necessários para quase tudo que a gente faz, incluindo a nossa agenda, que nos lembra a cada aviso o quanto estamos sempre atrasados.

Eu sei, isto tudo nos rouba demais das nossas famílias. E eu sei também que é muito triste. Mas, como uma adulta comum que trabalha, tem filhos, cuida do lar, da família e de si mesma ao mesmo tempo, eu compreendo os filhos de todos os idosos que eu atendo. Não é mole. E não adianta nos dizerem coisas como “você precisa estabelecer prioridades”. Eu estou tentando estabelecer essas tais prioridades desde que virei adulta e, infelizmente, não consigo. Ou, quando consigo, não se mantém, porque todo santo dia tem “um trem”, como dizem os mineiros, para eu resolver que não estava na minha agenda.

Eu tento conviver mais com meus pais idosos, mas, como no caso de muitos filhos, para piorar minha situação e a deles, eles moram em outro estado e eu só os vejo, em geral, duas a três vezes por ano. Telefono muito, mando mensagens pelo aplicativo, troco fotos, mas nem de longe tenho a mesma percepção do estado real deles.

Confesso que, às vezes, tenho o desejo de juntar toda a família e ir morar no mato, isolada do agito da cidade, mas tenho que trabalhar, minha filha tem escola, meus pais precisam de médicos… e, assim, segue o baile.

Durante a maior parte do tempo, para todo mundo, a convivência com os pais idosos acontece em doses pequenas. Uma visita rápida, um almoço apressado, uma ligação curta. O envelhecimento, que é silencioso por natureza, se adapta a esse ritmo fragmentado. Um esquecimento vira “coisa boba”. Uma tontura vira “calor”. Um tropeço vira “descuido”. A vida sempre encontra uma explicação confortável para não lidar com o que incomoda. É a nossa tentativa vã de aliviar a pressão.

E quero lembrar que, se filhos que são geriatras ou gerontólogos, ou seja, especialistas em envelhecimento, podem deixar passar alguma coisa na observação dos próprios pais, imaginem a população geral que, no Brasil, ainda não recebe educação suficiente sobre o processo de envelhecer.

Mas, retomando o tema, chega o final de ano e as férias familiares e basta passar alguns dias juntos para ver o corpo idoso começar a “contar a sua história com menos filtros”.

É quase sempre nesse período que as famílias percebem: algo mudou.

Nos primeiros meses do ano, esse movimento se repete de forma impressionante. Filhos e filhas chegam preocupados, confusos, muitas vezes culpados. “No Natal eu notei coisas que nunca tinha percebido.” E seguem descrevendo sinais que, isoladamente, pareciam pequenos demais para merecer atenção: lentidão, quedas ou quase quedas, esquecimento recente, confusão mental no fim do dia, tonturas frequentes e dificuldade para tarefas simples.

O que mudou não foi o idoso.
O que mudou foi o tempo de convivência.

Há algo emocionalmente difícil nisso tudo. A percepção da fragilidade costuma surgir justamente quando a família queria celebrar. E essa descoberta vem misturada com culpa: por não ter visto antes, por ter minimizado sinais, por ter se ocupado demais. Mas também vem acompanhada de algo bonito, o desejo de cuidar. O problema é que cuidar, na vida real, raramente é simples.

Cuidar não é apenas amar.
É reorganizar a vida.

Estudos com cuidadores familiares mostram algo que quem cuida já sabe, mesmo sem nunca ter colocado em palavras: o cuidado é ambíguo. Ele é pesado e, ao mesmo tempo, cheio de sentido. É cansativo, exige paciência, coragem e força emocional. Mas também é atravessado por amor, carinho, gratidão, dever e retribuição. O cuidador ama e se esgota. E não há contradição nisso. Há, apenas, humanidade.

O cuidado familiar não começa com um anúncio solene. Ele começa com uma ajuda. Depois vira rotina. Depois vira responsabilidade diária. E, quando a família percebe, há alguém sustentando quase tudo sozinho. Na maioria das vezes, uma mulher: filha, esposa, nora. Não porque nasceu para isso, mas porque a cultura ainda empurra o cuidado para o colo feminino como se fosse destino.

O Natal costuma escancarar também quem cuida. É aquela pessoa que quase não senta à mesa. Parece não estar em paz. Com cara de preocupação e sono ou cansaço. Que observa se o idoso engoliu bem. Que levanta de madrugada. Que sabe os horários dos remédios de cabeça. Que parece sempre alerta. Muitas vezes, essa pessoa nem se reconhece como cuidadora: “estou só fazendo o que precisa ser feito”. O cuidado vai ficando invisível justamente por ser constante. E, como disse, pode ser invisível ao próprio cuidador familiar, o que torna o reconhecimento muito mais difícil.

Dor crônica, insônia, ansiedade, isolamento, tristeza persistente e culpa por “não poder salvar a pessoa idosa” do sofrimento são sentimentos muito comuns nas filhas cuidadoras, documentados por inúmeras pesquisas clínicas.

Muitos cuidadores também são idosos. Idosos cuidando de idosos. Uma situação cada vez mais comum e pouco discutida. O cuidado prolongado, sem apoio, cobra um preço alto. E quando o cuidador adoece, todo o sistema entra em risco.

Por isso, quando uma família me procura no início do ano, costumo dizer algo simples: o que você percebeu no fim do ano não é exagero. É informação. Lentidão, desequilíbrio, confusão mental e esquecimentos não são “coisas normais” que devem ser ignoradas. São sinais de alerta. E alerta não é sentença, é oportunidade de agir com dignidade e prevenir os agravos de saúde na pessoa idosa.

Mas também acolho as filhas culpadas. A grande maioria vive a “vida sanduíche” da mulher moderna, espremida no meio de família e trabalho externo e doméstico. Realmente, ser mulher não é para qualquer um.

Muitas dessas mudanças observadas têm causas tratáveis: efeitos colaterais de medicamentos, desidratação, infecções, alterações de pressão, problemas vestibulares, depressão, dentre outros. Mas, principalmente, falta de orientação correta para cuidar melhor e com mais leveza destes pais idosos. E isso é super possível.

Eu ensino famílias a se organizarem há mais de 20 anos. Famílias que conhecem o estado real dos seus idosos e sabem prever o que pode acontecer a médio e longo prazo, bem como estão organizadas para prestar socorro sem correria em casos de emergência, conseguem levar esta tarefa de forma muito mais leve.

O fim de ano não dá diagnóstico. Ele apenas acende a luz. A luz para a saúde de todos, na verdade. E, quando a luz acende, o cuidado precisa deixar de ser improviso.

Cuidar bem envolve avaliação, planejamento, adaptação do ambiente, reorganização da rotina e divisão real de responsabilidades. Envolve pensar na casa, nos riscos de queda, na funcionalidade, no ritmo do idoso e na sua autonomia para fazer tarefas sozinho, que deve ser preservada o máximo possível. Inclusive, a casa que não conversa com um corpo envelhecido se transforma em um território perigoso. Tapetes, degraus, iluminação ruim, banheiro sem apoio e móveis baixos ou instáveis aparecem com clareza quando o idoso passa mais tempo em casa durante as festas.

Adaptar a casa não tira autonomia.
Devolve.

Mas como é que o próprio idoso não percebe as próprias dificuldades e pede ajuda? Por várias razões. Podemos citar frases comuns como: “não quero dar trabalho para ninguém”, “não sou velho coisa nenhuma” ou “eu não preciso disso, estou bem assim”. Porém, o que mais pesa nessas falas é o que está por trás delas: a falta de compreensão de que cuidar e ser cuidado faz parte da vida para todos nós, o preconceito contra a velhice e a própria dificuldade de perceber os déficits motores e cognitivos que vão se instalando lentamente no processo longo de envelhecer.

O corpo se adapta, como numa gestação prolongada, ao contrário, e vai compensando estes déficits como pode, mas nem sempre com competência.

Falando sobre “gestação ao contrário”, vocês já perceberam que, quando ficamos grávidas, vamos sentindo as mudanças bem devagar ao longo das 38 a 40 semanas em que o bebê está se desenvolvendo dentro do nosso útero? E, assim, continuamos independentes e autônomas durante todo este período. O nosso corpo se adapta. Se vira com o barrigão. Eu engordei 16 quilos, mesmo com meu excelente médico no meu pé. Passei de 53 para 69 quilos em 38,3 semanas. Nem percebia, a não ser pela balança do consultório médico todos os meses me cobrando dieta com menos calorias.

Imaginem como é envelhecer, muito mais lentamente ainda do que uma gestação. A pessoa tem dificuldade de perceber o próprio corpo sozinha, sim. Portanto, é preciso que olhemos de verdade para os nossos pais e avós idosos.

Há também uma dimensão moral muito forte no processo de cuidar. Muitos cuidadores falam em obrigação, dever, retribuição. “Foi minha mãe.” “Ele cuidou de mim.” Esses sentimentos fazem parte da história familiar e merecem respeito. Mas há um limite que precisa ser dito com cuidado: obrigação não pode significar abandono de si. Retribuição não pode virar adoecimento. O cuidado precisa ser compartilhado, sustentado por rede e apoiado por orientação profissional.

“Ajudo quando posso” não é o mesmo que dividir responsabilidade com um irmão, por exemplo. É preciso guarda compartilhada para cuidar de um idoso dependente.

O fim de ano também expõe conflitos familiares antigos. Irmãos que discordam, parentes que opinam de longe, quem aparece na festa e desaparece na rotina. Isso machuca, porque o cuidado cotidiano não é feito de grandes gestos. É feito de repetição, de renúncia, de vigilância silenciosa. Quem cuida toma decisões difíceis o tempo todo: quando insistir em uma avaliação, quando aceitar ajuda, quando dizer que não dá mais.

E, no centro de tudo isso, está o idoso, pessoa inteira, não apenas alguém que precisa de ajuda. O idoso percebe olhares, percebe silêncios, percebe tensões. Muitas vezes sente medo de perder o lugar na família, medo de ser tratado como criança. Cuidar bem é proteger sem apagar, adaptar sem humilhar, incluir nas decisões sempre que possível.

Os sinais que aparecem com mais força no fim do ano, como lentidão, desequilíbrio, esquecimento, confusão mental em alguns momentos, tonturas, baixa audição ou visão, não devem ser transformados em pânico. Devem ser transformados em caminho. Um caminho que começa com avaliação adequada e termina com uma vida mais segura para todos, inclusive para quem cuida.

Janeiro, fevereiro e março costumam ser meses de despertar. As imagens do fim do ano não saem da cabeça: o quase tombo no banheiro, a confusão com horários, a dificuldade para reconhecer algo simples, o silêncio nas festas. Essas imagens doem, mas também acordam. E esse despertar pode ser a diferença entre um ano de improviso e um ano de cuidado planejado.

Cuidado planejado não é cuidado frio.
É cuidado que sustenta e é sustentável por quem cuida.

Se eu pudesse deixar um pedido às famílias, seria este: não deixem que o susto do fim do ano se transforme em negação. Transformem em decisão. Decisão de observar, de buscar ajuda, de adaptar, de dividir e de cuidar também de quem cuida. Amor, sozinho, não dá conta de tudo. Amor precisa de método, de apoio e de descanso.

Envelhecer é uma arte porque exige delicadeza para compreender as mais diversas manifestações do tempo. Cuidar também é uma arte, porque exige delicadeza para perceber nuances diversas que estão subconscientes nos relacionamentos. É preciso não só olhar e tocar, mas sentir.

E, quando as luzes de dezembro se apagam, ficam o corpo, o tempo e o vínculo. Que o próximo ano comece com menos culpa e mais presença. Menos solidão e mais ajudas mútuas. Porque talvez a verdadeira celebração seja essa: transformar o cuidado em um lugar onde todos consigam permanecer inteiros.

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