Hoje quero conversar com vocês sobre algo fundamental: viver bem todas as fases da vida — inclusive aquela que mais tentamos evitar. Sim, estou falando da velhice.
E é justamente por isso que faço um convite que pode soar desconfortável à primeira vista: vamos aceitar que vamos envelhecer? Aliás, que já estamos envelhecendo. E que isso não é um erro — é uma conquista da humanidade e da medicina. Envelhecer é, antes de tudo, um sucesso!
Sim, envelhecer é um privilégio. Mas também é um desafio — especialmente em uma sociedade que cultua a juventude como se ela fosse a única forma legítima de existir. Slogans como “para sempre jovem” deixaram de ser metáforas para virar metas. E qualquer sinal de envelhecimento passa a ser escondido, disfarçado ou ridicularizado.
Esse culto à juventude eterna tem um preço alto: ele nos impede de nos preparar para um futuro inevitável. E quando não nos preparamos, o impacto é profundo — para cada indivíduo, para as famílias e para a sociedade como um todo.
Quando não nos reconhecemos como pessoas que envelhecem:
- não exigimos políticas públicas que nos incluam;
- não pressionamos empresas a manter profissionais com 60, 70 anos no mercado de trabalho;
- não demandamos cidades que respeitem corpos mais lentos, mais frágeis, com outras necessidades;
- não preparamos profissionais de saúde para ouvir o idoso — em vez de tratá-lo apenas como um “paciente de risco”.
Enquanto o velho for sempre “o outro”, as soluções continuarão emergenciais: cadeira de rodas, cuidador, barra de apoio, ambulância. Tudo isso é essencial, claro. Mas não é suficiente.
Não basta uma rampa, se não há um banco confortável na praça.
Não basta uma barra de apoio, se o médico atende com pressa e sem escuta.
Não basta um cuidador, se a família não entende as emoções por trás de um comportamento difícil.
A velhice não é um problema clínico. É uma fase da vida — e, como todas as outras, precisa de estrutura, espaço, escuta e pertencimento.
As cidades não estão preparadas para nós: os velhos. Sim, nós. Porque, se ainda não somos, seremos em breve. E não vamos morrer cedo. Vamos viver algumas décadas como pessoas com 60 anos ou mais.
No Brasil, a média de altura dos degraus públicos ainda desrespeita as normas técnicas. Os sinais sonoros nos semáforos são ausentes ou inaudíveis. As calçadas são buracos com nome. Bancos de praça desapareceram. As filas preferenciais existem, mas o atendimento é igual — ou até mais apressado. O tempo urbano é cruel para quem anda devagar.
E o mais grave: nossas cidades não são pensadas por nem com pessoas idosas. São remendadas, adaptadas às pressas. A velhice continua sendo tratada como exceção, como um “extra”, e não como parte natural da vida de todos. Quando, na verdade, estamos envelhecendo como população — e isso está diante dos nossos olhos.
O número de brasileiros com 60 anos ou mais cresce a cada ano. A pergunta é: estamos nos preparando para isso? Há mais de 20 anos atuo na área da gerontologia. E há mais de 20 anos sabemos do despreparo — e das consequências dele.
Foi justamente essa trajetória que me mostrou o quanto é urgente que cada um de nós reconheça a própria velhice.
Existe um provérbio africano que diz: “É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança.” É verdade — porque são essas crianças que, um dia, serão os velhos que ensinaram a elas que envelhecer é normal. Mas também é preciso uma aldeia inteira para acolher a velhice. Para que ela seja vivida com dignidade, visibilidade e voz.
Ser uma cidade amiga da pessoa idosa vai além da infraestrutura. Exige cultura, convivência entre gerações, políticas públicas empáticas, educação contínua, respeito ao tempo do outro, cuidado compartilhado.
Precisamos incluir a velhice na escola, na empresa, no transporte, na arte, na TV, no bairro, no parque, no planejamento urbano, na tecnologia.
Precisamos de mais bibliotecas com letras grandes, sites acessíveis, cardápios legíveis, farmácias que falem com o idoso — e não apenas com o acompanhante.
Precisamos formar uma geração de profissionais preparados para os desafios do envelhecer: médicos, arquitetos, cuidadores, jornalistas, terapeutas, engenheiros, motoristas, gerentes, professores, programadores…
A velhice precisa estar no currículo escolar, na pauta do urbanismo, nos editais culturais, nas startups de tecnologia, nos conselhos corporativos.
Mas, para isso, precisamos fazer dela uma causa nossa — e não dos outros.
Envelhecer é, muitas vezes, abrir mão. Do que fomos. Do que sonhamos. Do que controlávamos. Da ideia de protagonismo eterno. Isso dói, sim. Mas pode também libertar. Pode abrir espaço para novas presenças, para um ritmo mais gentil, para relações mais profundas. Para escuta, sabedoria, reconstrução, recomeço — desde que sejamos respeitados e incluídos, e não descartados ou silenciados.
O dilema é claro: queremos ser respeitados na velhice… mas não queremos ser velhos. Essa contradição precisa ser resolvida — dentro de cada um de nós e nas estruturas sociais que construímos.
A única forma de envelhecer com dignidade é admitir que vamos envelhecer. Não há volta. Não há ré. “A vida segue sempre em frente, o que se há de fazer…”, como canta Toquinho.
E a única forma de termos voz na velhice é usá-la agora — para exigir, propor, transformar. Esta coluna é também um convite para refletirmos juntos sobre como viver bem todos os ciclos da vida. Com lucidez, afeto, inteligência e ativismo.
Porque não existe sociedade saudável que despreze o próprio futuro.