Antes de analisar qualquer caso concreto, precisamos ancorar o estudo em teorias e evidências científicas, como as que discutimos nas colunas passadas, especialmente os modelos do Dark Factor (D) e do modelo triárquico da psicopatia (Boldness, Meanness, Disinhibition). Esses modelos permitem observar comportamentos concretos (planejamento de crimes, ausência de remorso, manipulação etc.) não como meras ações isoladas, mas como expressões de traços subjacentes.
Ao mesmo tempo, é possível relacionar esses comportamentos às redes cerebrais envolvidas (vmPFC, cíngulo, ínsula, núcleos de recompensa), compreendendo que muitas dessas ações derivam de déficits ou padrões atípicos em processos como empatia afetiva, tomada de decisão moral e antecipação de punições.
O primeiro caso foi manchete em toda a mídia e chamaremos de caso “Suzane von Richthofen”, que, com frieza afetiva e planejamento instrumental, orquestrou o assassinato dos pais em 2002. O caso apresenta características típicas de um perfil com traços psicopáticos significativos. O crime foi planejado friamente, executado em cooperação com terceiros (seu namorado e o irmão dele) e sem evidências claras de culpa ou arrependimento imediato, o que reflete baixo funcionamento empático-afetivo, ausência de inibição moral e alta instrumentalidade comportamental.
Esses elementos dialogam diretamente com o que a literatura descreve como meanness (crueldade, desprezo por normas sociais, ausência de empatia) e boldness (frieza emocional, coragem diante de consequências sociais). No plano neuropsicológico, comportamentos como esse são frequentemente associados a hipofuncionamento do córtex pré-frontal ventromedial e da ínsula anterior, regiões envolvidas no processamento da empatia e na antecipação de resultados morais negativos.
Além disso, o caso ilustra com clareza como fatores socioculturais, como dinâmicas familiares, educação permissiva e privilégios socioeconômicos, podem fornecer terreno fértil para a expressão desses traços. O ambiente, nesse caso, não foi causa direta, mas potencializou a emergência do comportamento psicopático.
Também alardeado por todas as mídias, o segundo caso, que chamaremos de caso Eliza Samudio, ocorrido em 2010, apresenta um perfil psicopático com nuances distintas. Embora também envolva planejamento e frieza, aqui a impulsividade, a violência e o sadismo ganham destaque. O crime não foi apenas a eliminação de um obstáculo (como no caso Suzane), mas uma ação carregada de crueldade, desumanização e desprezo absoluto pela vida humana, com indícios de tortura e ocultação de cadáver.
Esses elementos se alinham a altos níveis de desinibição (falta de controle comportamental, impulsividade) e meanness extremos. Além disso, a presença de sadismo, uma das facetas emergentes do estudo da “tétrade sombria”, torna-se evidente na forma como a vítima foi tratada. Neuropsicologicamente, comportamentos desse tipo costumam associar-se não apenas a falhas na empatia afetiva, mas também à hiperatividade do sistema de recompensa dopaminérgico, reforçando o prazer ou a neutralidade diante do sofrimento alheio.
Apesar de ambos apresentarem traços psicopáticos, as manifestações são qualitativamente diferentes:
∙ Suzane von Richthofen representa uma expressão mais intelectualizada, instrumental e estratégica da psicopatia, com predomínio de planejamento, manipulação e cálculo frio, um perfil mais próximo da “psicopatia primária”.
∙ Eliza Samudio representa uma expressão mais impulsiva, agressiva e sádica, marcada por violência física e prazer na dominação, mais alinhada à “psicopatia secundária” e às dimensões do sadismo.
Essa diferença é fundamental para compreender a psicopatia não como uma entidade única, mas como um espectro multifacetado que pode se expressar de maneiras diversas, dependendo de fatores genéticos, neurobiológicos, ambientais e situacionais. Ambos os casos também exemplificam como o contexto cultural brasileiro, caracterizado por altos índices de impunidade, desigualdade e um imaginário social que normaliza a violência, pode reforçar ou, ao menos, não inibir comportamentos psicopáticos em nível comportamental.
Embora esses casos sejam públicos e amplamente estudados, é importante frisar que qualquer análise deve evitar diagnósticos formais, pois esses só podem ser feitos com avaliação clínica direta, e focar na interpretação comportamental, criminológica e psicossocial. O objetivo aqui não é rotular, mas compreender como traços e padrões descritos pela literatura se manifestam em exemplos concretos e suas implicações para o estudo da psicopatia e da personalidade sombria.
Referências
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