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Ciência da Psicologia
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Personalidade Sombria e Estruturas Sociais Aversivas: Brasil um terreno fértil para o Dark Factor

Como desigualdades, corrupção e instabilidade institucional criam condições que intensificam traços de personalidade sombria na sociedade brasileira

Demerval Bruzzi (CRP 01/21380)

03/12/2025 14h56

woman with smile happy face with blurry motion

Foto: Freepik

A personalidade humana sempre foi um dos objetos centrais da psicologia, não apenas por revelar as nuances da individualidade, mas também por evidenciar os mecanismos pelos quais fatores socioculturais moldam padrões de comportamento. Entre as diversas vertentes teóricas e empíricas que exploram essa complexa relação, a pesquisa contemporânea sobre a chamada personalidade sombria ocupa um lugar de destaque, pois aborda traços tradicionalmente associados à manipulação, à frieza emocional e à exploração do outro. Em 2025, um estudo de grande repercussão publicado pela Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos (PNAS) trouxe novas e robustas evidências empíricas para esse campo ao demonstrar como contextos sociais adversos podem não apenas influenciar, mas potencialmente fomentar a expressão de traços sombrios em larga escala populacional (ZETTLER et al., 2025).

O conceito de Dark Factor of Personality (D) parte da premissa de que diferentes traços sombrios, como narcisismo, maquiavelismo, psicopatia e sadismo, compartilham um núcleo comum: a tendência a maximizar o próprio benefício, mesmo à custa do bem-estar alheio, frequentemente racionalizada por crenças que justificam essa conduta (MOSHAGEN; HILBIG; ZETTLER, 2018). A pesquisa de Zettler e colaboradores (2025) expande esse entendimento ao investigar, com uma amostra sem precedentes de mais de 1,7 milhão de participantes em 183 países e 144 mil indivíduos nos 50 estados norte-americanos, a correlação entre condições sociais adversas, como desigualdade econômica, corrupção, pobreza e violência, e níveis médios de personalidade sombria. Os resultados demonstraram uma associação consistente: sociedades que apresentam maior grau de disfunções estruturais tendem a exibir médias mais elevadas de D em suas populações.

Essa relação entre ambiente social e traços sombrios desafia uma das crenças clássicas da psicologia da personalidade, a de que traços individuais são predominantemente estáveis e determinados por fatores internos. Ao contrário, os achados sugerem que tais traços podem ser em parte modulados pelo contexto, especialmente quando este favorece estratégias de autopreservação e vantagem individual em detrimento do coletivo. Em ambientes onde a confiança social é corroída, onde normas éticas são constantemente violadas e onde recursos são escassos, comportamentos egoístas e exploradores podem se tornar não apenas adaptativos, mas socialmente reforçados (ZETTLER et al., 2025). Essa leitura aproxima-se das perspectivas evolucionistas, que interpretam os traços sombrios como estratégias de vida orientadas à maximização do ganho em contextos competitivos e imprevisíveis (JONASON et al., 2012).

Ao observarmos a realidade política e social brasileira sob essa lente, percebemos um paralelo direto com as conclusões do estudo. O Brasil é historicamente marcado por desigualdades estruturais profundas, altos índices de corrupção, instabilidade institucional e desconfiança generalizada nas instituições públicas. Tais condições criam um ambiente fértil para a manifestação de traços sombrios em larga escala, não apenas entre líderes políticos, mas também no comportamento cotidiano da população. A lógica do “cada um por si”, “o importante é levar vantagem em tudo” e a crença na impunidade favorecem estratégias de autopreservação, mesmo que em detrimento do bem coletivo, perpetuando um ciclo de desconfiança e individualismo social. Assim como apontado por Zettler et al. (2025), o ambiente torna-se um catalisador de comportamentos manipuladores e oportunistas, criando uma retroalimentação entre estrutura social e traços de personalidade.

Um dos exemplos mais emblemáticos dessa dinâmica é o fenômeno culturalmente conhecido como “jeitinho brasileiro”, uma estratégia social caracterizada pela busca de soluções informais, muitas vezes ilegais ou antiéticas, para contornar regras e obter vantagens pessoais. Embora frequentemente romantizado como sinal de criatividade e adaptabilidade, o “jeitinho” também reflete padrões comportamentais alinhados ao núcleo da personalidade sombria: manipulação, racionalização de condutas egoístas e desprezo pelas normas coletivas. Ao privilegiar resultados imediatos e ganhos individuais, essa prática contribui para a perpetuação de um sistema no qual comportamentos desviantes são normalizados, enfraquecendo a coesão social e corroendo a confiança nas instituições, fenômenos diretamente correlacionados às condições que o estudo da PNAS aponta como terreno fértil para o desenvolvimento do Dark Factor.

Ademais, a política brasileira oferece exemplos recorrentes da expressão institucionalizada desses traços. Escândalos de corrupção, uso estratégico de narrativas populistas, exploração do poder em benefício próprio e manipulação do eleitorado são manifestações concretas de narcisismo, maquiavelismo e psicopatia no cenário político. Essas condutas não apenas comprometem o funcionamento democrático, mas também influenciam a população a internalizar comportamentos semelhantes em sua vida cotidiana, naturalizando práticas antiéticas e reforçando a cultura da vantagem. Nesse contexto, a sociedade brasileira ilustra de maneira clara a tese de Zettler et al. (2025), pois quanto mais adversas as condições sociopolíticas, mais propenso o ambiente estará a fomentar a disseminação e legitimação de traços sombrios em todos os níveis da vida social.

Outro ponto de relevância teórica emergente do estudo é a implicação de que a personalidade sombria não é apenas um fenômeno individual, mas um indicador coletivo de condições estruturais. Ao relacionar níveis de D com variáveis macroestruturais, Zettler e colegas (2025) sugerem que a psicologia da personalidade pode servir como ferramenta diagnóstica do estado social e político de uma sociedade. Isso amplia significativamente o campo de aplicação desses conceitos, ultrapassando o escopo clínico e chegando a áreas como políticas públicas, governança e justiça social. A interpretação desses dados, contudo, requer cautela, e os autores enfatizam que as correlações encontradas não implicam causalidade direta. Ainda assim, a robustez amostral e a consistência dos resultados apontam para a necessidade de uma abordagem interdisciplinar que considere tanto fatores individuais quanto estruturais na compreensão da personalidade.

Do ponto de vista prático, as conclusões do estudo possuem implicações profundas. Se traços sombrios emergem com maior intensidade em contextos de desigualdade e instabilidade, políticas voltadas à redução de tais condições poderiam ter impacto indireto na diminuição de comportamentos manipuladores, corruptos e antissociais em nível populacional. Isso sugere que a promoção de instituições confiáveis, a redução de desigualdades e a valorização de normas cooperativas não apenas beneficiam a coesão social, mas também atuam no nível psicológico, limitando a proliferação de padrões comportamentais disfuncionais. Assim, o combate aos traços sombrios não se restringe ao consultório ou ao laboratório, pois exige ações coordenadas nas esferas política e social.

Em síntese, o estudo conduzido por Zettler et al. (2025) representa um marco na compreensão da personalidade sombria ao evidenciar que sua expressão não é apenas um reflexo de características internas, mas também um produto das estruturas em que os indivíduos estão inseridos. Ao revelar que sociedades marcadas por adversidades tendem a produzir mais traços sombrios, a pesquisa desafia modelos tradicionais e propõe uma nova forma de pensar a personalidade, não como algo imutável e isolado, mas como um fenômeno profundamente enraizado nas dinâmicas sociais. Essa perspectiva integradora convida psicólogos, sociólogos, formuladores de políticas e demais cientistas sociais a repensarem as estratégias de enfrentamento de comportamentos disfuncionais, compreendendo que, para transformar o indivíduo, é muitas vezes necessário transformar também a sociedade que o forma.

Até a próxima…

Referências
JONASON, P. K. et al. The Dark Triad: Facilitating a short-term mating strategy in men. European Journal of Personality, v. 26, n. 5, p. 487–499, 2012.
MOSHAGEN, M.; HILBIG, B. E.; ZETTLER, I. The Dark Factor of Personality. Psychological Review, v. 125, n. 5, p. 656–688, 2018.
ZETTLER, I. et al. Aversive societal conditions explain differences in ‘dark’ personality across countries and US states. Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America, v. 122, n. 5, e40378002, 2025. DOI: 10.1073/pnas.40378002.

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