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Ciência da Psicologia
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PANTONE 11-4201 “Cloud Dancer” e Psicologia

Quando uma simples escolha cromática deixa de ser apenas estética e passa a revelar tensões identitárias, disputas simbólicas e a dificuldade coletiva de lidar com a ambivalência

Demerval Bruzzi (CRP 01/21380)

31/12/2025 11h00

Atualizada 30/12/2025 19h44

pantone

Foto: Reprodução/Pantone

É oficial, a Pantone anunciou para 2026 a cor PANTONE 11-4201 “Cloud Dancer”, um branco suave/off-white, apresentado como símbolo de “calma” e “clareza” em um mundo percebido como ruidoso e fragmentado. A reação pública, porém, foi imediata: parte do debate leu o branco como metáfora de pacificação e reinício; outra parte viu nele um gesto cultural “fora do tom”, com implicações ideológicas sobre silenciamento, apagamento e recuo da pluralidade.

É justamente aí que a Psicologia se torna inevitável: cor nenhuma é “apenas cor” quando vira emblema coletivo. Em Psicologia Social, desde Kurt Lewin, a ideia de que o comportamento emerge do campo (pessoa X ambiente) nos ajuda a entender por que uma escolha cromática institucionalizada pode virar gatilho de conflito simbólico: não se discute somente um tom, discute-se o “clima” moral, estético e político no qual esse tom passa a circular. A “lacração ideológica” aparece quando a cor é capturada como bandeira de facções, perdendo sua função de mediação sensível e tornando-se prova de pertencimento: a cor deixa de ser experiência e vira teste de identidade.

Numa dinâmica assim, o que se rompe não é só o diálogo, mas a própria capacidade psicológica de sustentar ambivalências. A polarização tende a empurrar grupos para leituras unidimensionais: ou o branco é “paz e recomeço”, ou é “apagamento e hegemonia”; ou é “neutralidade madura”, ou é “covardia estética”. O mecanismo é conhecido: quando identidades sociais ficam salientes, cresce a necessidade de proteger o “nós” e rejeitar o “eles”, e qualquer símbolo público (inclusive uma cor) pode ser interpretado como ataque ou validação. Em termos tajfelianos (Henri Tajfel, 1981), a disputa simbólica alimenta fronteiras, reforça protótipos e intensifica a lógica de ingroup/outgroup. A cor vira atalho cognitivo e moral.

A escolha do branco potencializa essa dinâmica porque o branco é um significante de alta ambiguidade: ele tanto pode representar pureza, paz, limpeza e “folha em branco” quanto pode representar esterilização, vazio, assepsia emocional e apagamento cultural. A Pantone, ao apresentar o “Cloud Dancer” como “sussurro de calma” e reinício, tenta orientar a leitura afetiva para um registro de serenidade. Só que, em um ambiente social marcado por tensões identitárias, muitas vezes ideológicas, que fazem a verdadeira razão se perder, a ambiguidade do branco deixa de ser estética e vira moral: a interpretação passa a funcionar como declaração de valores, e não como apreciação sensorial. É por isso que críticos apontaram um caráter “ideologicamente insensível” no contexto atual, enquanto defensores falaram de necessidade coletiva de silêncio, reparo e respiração.

Do ponto de vista clínico-cultural, dá para ler esse episódio como um microcosmo das “lacrações ideológicas” que atravessam a Psicologia: quando o campo científico é pressionado a produzir respostas alinhadas a tribos morais, ele corre o risco de trocar explicação por condenação, método por militância e nuance por slogan. A Psicologia, para preservar seu estatuto de ciência humana rigorosa, precisa manter um espaço de complexidade onde Jung chamaria de convivência com a sombra: reconhecer que o símbolo (a cor, o conceito, a teoria) carrega aspectos luminosos e sombrios, e que negar um deles é empobrecer o real. William James, ao defender o pluralismo e a primazia da experiência vivida, também ajudaria aqui: a mesma cor pode produzir vivências psicológicas radicalmente diferentes sem que uma anule a outra; o problema começa quando substituímos experiência por ortodoxia.

Há ainda um elemento de psicodinâmica de grupo que vale ouro: em contextos de ansiedade social elevada, grupos tendem a buscar “soluções mágicas” e objetos simples para conter angústias difusas. Um branco institucionalizado como “calmante cultural” pode funcionar como objeto de contenção, mas, se o grupo desconfia da intenção, o mesmo objeto vira objeto persecutório. A controvérsia em torno do “Cloud Dancer” tem esse sabor: para uns, o branco oferece um lugar mental de pausa; para outros, sinaliza um comando para “calar a cor” justamente quando a cor (no sentido simbólico de diferença) está em disputa.

O ponto mais fértil, psicologicamente, é perceber que o branco, nessa cena, não é a causa: ele é o termômetro. Quando uma comunidade está íntegra, símbolos ambíguos viram conversa; quando está lacerada, símbolos ambíguos viram guerra. E é aqui que a Psicologia precisa assumir uma postura difícil e adulta: não “tomar a cor” como um lado, mas investigar os processos. Quais necessidades emocionais estão sendo reguladas pelo ataque ou pela defesa do símbolo? Que medos coletivos, de apagamento, de caos, de perda de pertencimento ou de descontrole estão por trás da certeza moral? Que recompensas sociais (curtidas, status, pertencimento) reforçam a radicalização interpretativa?

Se quisermos transformar esse episódio em algo realmente útil, a melhor síntese é esta: a Pantone escolheu o branco como uma proposta de “silêncio” em meio ao ruído; a sociedade respondeu mostrando que, hoje, o silêncio também é interpretado politicamente. Para a Psicologia, a lição é dupla. Primeiro, a neutralidade simbólica é uma fantasia em tempos de identidade inflamada: até o “neutro” é lido como posição. Segundo, a saída não é intensificar a guerra de símbolos, mas recuperar as virtudes científicas e éticas do campo: método, evidência, pluralidade teórica e uma disposição constante de interpretar sem reduzir. O branco pode ser recomeço, pode ser apagamento, pode ser pausa, pode ser anestesia; o que decide não é a cor em si, mas o estado do vínculo social e a maturidade psicológica de tolerar ambivalência.

No fim, talvez o “Cloud Dancer” tenha escolhido a gente mais do que a gente escolheu ele: se a reação foi tão visceral, é porque a cultura está pedindo, por vias tortas, aquilo que a Psicologia sempre prometeu oferecer quando está no seu melhor: complexidade sem cinismo, crítica sem histeria e sentido sem dogma.

Até a próxima…

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