Hoje convidei a psicóloga Vanessa Barbosa para refletir sobre as narrativas modernas e a visão psicanalítica desse processo.
“Meu corpo não é meu corpo, é ilusão de outro ser.
Sabe a arte de esconder-me e de tal modo sagaz que a mim de mim ele oculta.
Meu corpo, não meu agente, meu envelope selado, meu revólver de assustar, tornou-se meu carcereiro, me sabe mais que me sei.”
Carlos Drummond de Andrade
Vivemos uma contradição curiosa. Nunca tivemos tantas ferramentas para nos comunicar. As plataformas digitais nos convidam a compartilhar cada instante: postamos fotos, escrevemos sobre o cotidiano, consumimos histórias em ritmo acelerado. Esse fluxo incessante de narrativas “curadas” e performances ideais promete conexão, mas muitas vezes nos devolve apenas superficialidade.
Paradoxalmente, em meio a tanta fala, percebemos um declínio na arte de narrar. Parece cada vez mais difícil transmitir experiências autênticas e completas. Como, em um tempo de tanta eloquência digital e autoexposição, estamos perdendo justamente a capacidade de contar nossa própria história? E o que isso revela sobre nossa saúde mental?
A experiência que não encontra palavras
Walter Benjamin, em seu ensaio Experiência e Pobreza (1933), já havia notado essa fratura. Ao analisar o trauma da Primeira Guerra Mundial, observou que os soldados voltavam não ricos em histórias, mas pobres em sua capacidade de narrar. A brutalidade e o absurdo da guerra não cabiam nas palavras disponíveis. A linguagem, moldada para outros propósitos, falhava.
Benjamin apontava que, quando a experiência se desintegra, a narrativa também se perde. Não se tratava de uma falha individual, mas de um sintoma coletivo: o esgotamento de uma forma de se relacionar com o mundo.
Hoje, os silêncios talvez não venham das trincheiras, mas da velocidade e da superficialidade da vida moderna. A cultura da positividade tóxica – que desautoriza a dor, o luto e a fragilidade – funciona como um sistema que invalida o real. Se a vida deve ser sempre uma curadoria de momentos alegres, onde encaixamos o contraditório, o complexo, o não ideal?
O desmentido e suas marcas
Aqui entra o conceito de Sándor Ferenczi: o desmentido. Para o psicanalista, o que traumatiza não é apenas o acontecimento em si, mas a negação da experiência por uma figura de referência. Uma criança que relata algo assustador e ouve de um adulto “isso é coisa da sua cabeça” aprende a duvidar de si mesma. O desmentido – a invalidação da dor – é o que torna o trauma patogênico.
Na sociedade atual, esse mecanismo se repete. O cansaço é visto como falta de empenho, a ansiedade é minimizada como algo banal. O corpo sente a dor, mas a mente é forçada a negá-la. Assim, a pessoa se divide: uma parte reconhece o sofrimento, a outra o silencia.
E quando a palavra falha, o corpo fala. Experiências não narradas se inscrevem como memória corporal: dores crônicas sem explicação, ansiedade difusa, sintomas somáticos, explosões emocionais desproporcionais. O corpo insiste em expressar o que a mente não conseguiu simbolizar.
Psicoterapia: reconstruindo a narrativa
Nesse cenário, a psicoterapia se coloca como um espaço essencial para reconstruir histórias. Um ambiente seguro onde o indivíduo pode validar suas experiências, dar sentido ao que foi desmentido e traduzir em palavras o que antes só se manifestava no corpo.
Ferenczi propunha a “elasticidade da técnica”: o terapeuta deve se adaptar ao paciente, acolhendo suas fragilidades sem repetir a violência do desmentido. Winnicott, por sua vez, via no brincar a possibilidade de acessar o verdadeiro self. O analista, ao emprestar sua fantasia, ajuda o paciente a preencher lacunas e a reescrever memórias fragmentadas.
A dificuldade de narrar a si mesmo é um sintoma do nosso tempo, ecoando no silêncio do sofrimento individual e na fragmentação da experiência. Mas a psicoterapia oferece um caminho: reconhecer que, por trás da fachada polida das redes e das performances sociais, existe uma história complexa.
Narrar é um ato de coragem. É reconhecer dores e triunfos, silêncios e gritos, fragmentos e totalidades. É transformar o indizível em palavra. O psicólogo, nesse processo, torna-se testemunha e co-construtor de sentido, ajudando a organizar o caos e a devolver continuidade à experiência.
Narramos para nos (re)encontrar. Para (re)construir o sentido de quem somos.