O Brasil tem uma das histórias mais instáveis do mundo em termos de política monetária. Embora o discurso oficial defenda a manutenção de juros altos como mecanismo necessário ao controle da inflação, os impactos sociais, econômicos e psicológicos dessa política seguem amplamente negligenciados — especialmente entre as populações mais vulneráveis.
Como economista e psicólogo, nesta coluna procurei fazer uma análise crítica da política de juros elevados no Brasil, comparando o cenário atual com o de 2006 — ano também marcado por taxas nas alturas, sob o mesmo partido político que governa hoje. Analiso os efeitos colaterais dessa escolha sobre os cidadãos de baixa renda e o setor produtivo nacional, à luz da Psicologia Econômica, da Neuroeconomia e da Economia Comportamental.
Em 2006, a taxa básica de juros (Selic) era de 15,25% ao ano, segundo o Banco Central, mesmo após a queda desde o pico de 26,5% registrado em 2003. A justificativa era conter a inflação e garantir a confiança dos investidores. No entanto, em um contexto de expansão dos programas sociais e de estabilidade fiscal, os impactos negativos dos juros poderiam ter sido atenuados com reformas estruturantes — o que não ocorreu.
Quase duas décadas depois, em 2024, o país volta a figurar entre os líderes mundiais em juros reais. Embora a Selic esteja em 10,5%, a taxa real (descontada a inflação) ainda ultrapassa os 6%, desestimulando consumo, crédito e produção. A ironia histórica é clara: sob um governo que se propõe a representar os mais pobres, repete-se uma política que penaliza os que menos têm e favorece os rentistas — os que lucram com a estagnação econômica.
Famílias de baixa renda são as mais afetadas pelos juros altos, pois dependem de crédito rotativo, financiamentos de longo prazo e parcelamentos para acessar bens básicos. Em 2024, a taxa do rotativo do cartão de crédito ultrapassava os 400% ao ano, segundo o Banco Central. Isso aprisiona milhões de brasileiros em ciclos de dívida, inadimplência e estresse financeiro crônico.
Do ponto de vista psicológico, esse cenário gera um estado de angústia prolongada, desamparo aprendido e insegurança existencial. O consumo — que deveria ser instrumento de inclusão e dignidade — transforma-se em fonte de culpa e sofrimento. Estudos como o de Lusardi e Tufano (2015) mostram que a ansiedade relacionada à dívida está fortemente associada à depressão, dificuldade de concentração e menor produtividade. Em regiões periféricas, a escassez de recursos financeiros, combinada à carência afetiva e de infraestrutura, amplia o sentimento de desesperança coletiva.
A alta dos juros também compromete a capacidade do Estado de investir em políticas públicas, já que boa parte do orçamento vai para o pagamento da dívida pública. Isso afeta diretamente áreas essenciais como saúde, educação e habitação, reforçando o ciclo de exclusão social.
Empresas — sobretudo pequenas e médias — operam com margens apertadas e dependência de capital de giro. Com o crédito caro, muitos negócios perdem capacidade de investimento, adiam contratações ou fecham as portas. Segundo o Sebrae (2024), 73% dos pequenos empresários afirmaram que os juros elevados dificultam diretamente sua expansão ou mesmo a sua sobrevivência.
Essa retração do setor produtivo gera desemprego e insegurança econômica — dois fatores que impactam fortemente o bem-estar psicológico dos trabalhadores. A perda do emprego é um dos eventos mais estressantes da vida, segundo a escala de Holmes e Rahe (1967), e está associada a maior risco de transtornos mentais, abuso de substâncias e suicídio (WHO, 2022).
A estagnação econômica também afeta a indústria: o país perde competitividade, aumenta a dependência de importações e reduz sua capacidade de inovação. Isso corrói o PIB e enfraquece o orgulho nacional, frustrando o sonho de uma potência emergente.
A manutenção de juros altos mesmo com a inflação sob controle não revela apenas um erro técnico, mas uma falha comportamental. Segundo Kahneman e Tversky (1979), agentes econômicos operam frequentemente sob vieses como aversão à perda e excesso de precaução. O Banco Central brasileiro, temendo uma inflação que não se concretizou, mantém uma política monetária guiada mais por pressões especulativas e narrativas de mercado do que por uma análise realista das necessidades da população.
Esse conservadorismo cria uma profecia autorrealizável de estagnação: o medo da inflação provoca retração econômica, inviabilizando o crescimento. Essa lógica não pune investidores estrangeiros, mas o cidadão comum, que sente no prato vazio e na conta de luz o custo da ortodoxia fiscal.
Em 2006, o Brasil mantinha uma das maiores taxas de juros do mundo ao mesmo tempo em que promovia o Bolsa Família. Hoje, a incoerência é ainda mais visível: apesar do discurso social, a política macroeconômica favorece os rentistas e sacrifica os mais pobres. A transferência de renda, por si só, torna-se insuficiente diante da corrosão do poder de compra, do desemprego estrutural e da queda no investimento.
Essa contradição entre uma política fiscal progressista e uma política monetária regressiva torna o projeto de país disfuncional. O resultado: uma população empobrecida, endividada, emocionalmente abalada e politicamente desiludida — terreno fértil para o crescimento da polarização, da violência e da apatia cívica.
Conclusão
Manter juros elevados no Brasil é mais do que uma decisão econômica: é uma escolha política e ética com impactos profundos na saúde mental, na coesão social e no futuro do país. Por trás da retórica do controle inflacionário, esconde-se um modelo que perpetua sofrimento e exclusão. Os efeitos psicológicos dessa política são devastadores e comprometem a qualidade de vida de milhões. Para que o Brasil avance de forma sustentável, é urgente romper com essa lógica e construir uma política econômica centrada no desenvolvimento humano.
Até a próxima.
Referências complementares
∙ Banco Central do Brasil. (2024). Relatórios da Política Monetária. Disponível em: https://www.bcb.gov.br
∙ Lusardi, A., & Tufano, P. (2015). Debt literacy, financial experiences, and overindebtedness. Journal of Pension Economics and Finance, 14(4), 332–368.
∙ Kahneman, D., & Tversky, A. (1979). Prospect theory: An analysis of decision under risk. Econometrica, 47(2), 263–291.
∙ Sebrae. (2024). Pesquisa sobre impacto dos juros nas micro e pequenas empresas. Disponível em: https://www.sebrae.com.br
∙ World Health Organization. (2022). Mental health and economic instability: Global impacts and recommendations.
∙ Siqueira, B. (2023). A política monetária e os limites do social no Brasil contemporâneo. Revista de Economia Política, 43(2), 250-270. ∙ Holmes, T. H., & Rahe, R. H. (1967). The Social Readjustment Rating Scale. Journal of Psychosomatic Research, 11(2), 213–218.