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Ciência da Psicologia
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Ditadura de Toga: reflexões entre direito, psicologia e literatura

Demerval Bruzzi (CRP 01/21380)

18/06/2025 15h17

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Foto: Gerada por IA

A consolidação da democracia moderna se sustenta no princípio da separação dos poderes, formulado por Montesquieu (2011) como antídoto ao autoritarismo. Em teoria, Executivo, Legislativo e Judiciário devem atuar de forma autônoma, mas harmônica e com freios mútuos. No entanto, no Brasil contemporâneo, cresce a inquietação em torno do Supremo Tribunal Federal (STF) e da ampliação de suas atribuições para além dos limites constitucionais. Essa atuação tem sido chamada de “ditadura de toga” — um termo provocativo que alerta para o risco de um novo tipo de autoritarismo, agora travestido de legalidade institucional.

A crítica não se dirige à existência de um Judiciário forte e independente, algo essencial à democracia. O problema surge quando ministros, não eleitos pelo povo, passam a exercer funções que caberiam ao Legislativo ou ao Executivo, julgando com base em convicções ideológicas, moralismos ou interpretações que distorcem o texto constitucional. A chamada judicialização da política — analisada por Barroso (2008) — evoluiu, em certos casos, para uma politização do Judiciário. Esse fenômeno transcende o campo jurídico e tem implicações psicológicas relevantes.

Sob a ótica da psicologia política, especialmente nos estudos de Hannah Arendt (2007), regimes autoritários não se instauram apenas pela força, mas também pela naturalização progressiva do controle institucional. A obediência à autoridade, como demonstrado nos experimentos de Milgram (1974), pode ser internalizada por indivíduos que delegam à autoridade o julgamento moral de seus atos, inibindo o senso crítico e a autonomia. Quando essa autoridade se apresenta como tecnicamente neutra — como é o caso do Judiciário —, a submissão social tende a se intensificar, tornando a contestação ainda mais difícil.

Decisões monocráticas do STF que envolvem censura prévia, retirada de conteúdos jornalísticos e investigações sem contraditório alimentam a percepção de um poder sem limites. Esse sentimento coletivo pode gerar impactos significativos na saúde mental da população, provocando uma sensação de impotência social e descrédito nas instituições. A psicologia social aponta que a insegurança jurídica e a imprevisibilidade institucional desorganizam a confiança interpessoal e aumentam os níveis de ansiedade generalizada (Zimbardo & Leippe, 1991). As pessoas passam a temer ser investigadas, censuradas ou criminalizadas por opiniões legítimas.

Esse cenário remete à distopia descrita por George Orwell em 1984, onde o Estado controla não apenas os corpos, mas também a linguagem, a memória e a percepção da realidade. O personagem Winston Smith é esmagado pela presença constante do “Grande Irmão”, vivendo em um mundo onde pensar é crime e o passado é reescrito continuamente pela elite dirigente. A “Novilíngua”, que elimina palavras perigosas, encontra eco em decisões judiciais que delimitam o que pode ou não ser dito sob o pretexto de combater o discurso de ódio. Quando o Judiciário assume o papel de legislador moral, substituindo o debate democrático por imposições unilaterais, a aproximação com o universo orwelliano se torna inquietante (Orwell, 2009).

Exemplos históricos como o nazismo e o stalinismo revelam como o Judiciário pode ser instrumentalizado. O Tribunal do Povo nazista, que proferia sentenças sumárias, e os julgamentos públicos na União Soviética serviam para legitimar a repressão. Ainda que o Brasil de hoje se apresente como democrático, o alerta está na forma sutil com que o poder pode se acumular sob a justificativa de proteger a própria democracia — um paradoxo denunciado pela psicologia crítica e pela psicanálise lacaniana como manifestação do “superego moralizante”, que pune em nome da Lei (Žižek, 2001).

O campo da psicologia jurídica deve olhar não apenas para a saúde mental dos indivíduos, mas também para a saúde institucional da sociedade. Um país que vive sob o temor de decisões arbitrárias — mesmo revestidas de legalidade — sofre erosão nos vínculos sociais e no senso de justiça. Está em jogo a estabilidade emocional da coletividade, o senso de pertencimento e a capacidade de exercer uma cidadania crítica.

A Psicologia Social, por sua vez, contribui para a compreensão dos processos de influência, poder e conformismo. As teorias de Solomon Asch e os estudos de Stanley Milgram demonstram que, diante de figuras percebidas como legítimas — como ministros do STF —, indivíduos e instituições tendem a aceitar decisões, mesmo quando estas violam princípios éticos e legais. Além disso, a Psicologia Política aponta que a concentração de poder em instituições tidas como “neutras” pode gerar uma falsa sensação de segurança democrática, encobrindo formas de opressão simbólica e institucional.

Do ponto de vista da saúde mental coletiva, a chamada ditadura de toga impõe consequências importantes. Quando o cidadão percebe que suas liberdades estão sendo restringidas por decisões inquestionáveis, instala-se um estado crônico de impotência, cinismo político e desconfiança institucional. Tais sentimentos, segundo a Psicologia Política, estão ligados ao aumento de ansiedade social, alienação cívica e retração participativa. A perda de clareza sobre os limites entre o certo e o errado, o legal e o ilegítimo, colapsa a percepção de justiça e, no plano clínico, pode se traduzir em insegurança difusa e desamparo aprendido.

Criticar a “ditadura de toga” não é rejeitar o STF, mas defender o equilíbrio entre os poderes. A democracia só se sustenta quando nenhum poder está acima da crítica ou da Constituição. Como alertava Orwell: “Quem controla o presente, controla o passado; quem controla o passado, controla o futuro” (Orwell, 2009). A história mostra que o autoritarismo raramente surge com tanques nas ruas. Muitas vezes, veste toga e assina sentenças em nome da lei.

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