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Ciência da Psicologia
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Cegueira cognitiva: quando o cérebro vê, mas não enxerga

Fenômeno psicológico revela como a atenção seletiva distorce a percepção da realidade e influencia decisões, emoções e relações no cotidiano

Demerval Bruzzi (CRP 01/21380)

08/10/2025 15h42

young businesswoman covering her eyes with drawn eyes paper

Foto: Freepik

A cegueira cognitiva é um fenômeno psicológico e neurocientífico que revela como a mente humana filtra, ignora e omite informações relevantes — mesmo quando elas estão diante de nossos olhos. Ao contrário do que muitos imaginam, perceber não é apenas receber estímulos visuais ou auditivos: é interpretar, priorizar e atribuir significado ao que se percebe.

A coluna desta semana analisa as bases teóricas e experimentais da cegueira cognitiva, explorando suas causas, manifestações e impactos na vida cotidiana, ao conectar conceitos de psicologia cognitiva, neurociência e tomada de decisão.

Imagine assistir a um vídeo em que jogadores passam uma bola e sua única tarefa seja contar os passes. No meio da cena, um homem vestido de gorila atravessa o quadro, para no centro, bate no peito e sai andando. O detalhe? A maioria das pessoas simplesmente não o percebe.

Esse experimento, conduzido por Daniel Simons e Christopher Chabris (1999) — amplamente conhecido nas redes sociais —, é um dos exemplos mais icônicos da cegueira cognitiva. Ele evidencia algo inquietante: nossa atenção é seletiva e, para economizar energia, o cérebro descarta estímulos potencialmente importantes.

Em um mundo saturado de informações, compreender os limites de nossa percepção vai muito além da curiosidade científica — é fundamental para entender nossas falhas de julgamento, nossos erros diários e nossa vulnerabilidade psicológica.

A cegueira cognitiva ocorre quando o cérebro deixa de processar informações relevantes disponíveis no ambiente, seja por falta de atenção, sobrecarga cognitiva ou viés perceptivo. Não se trata de um problema fisiológico dos olhos, mas de um filtro mental que atua antes que o estímulo alcance a consciência.

Esse fenômeno é sustentado por evidências de que tanto nossa memória de trabalho quanto nossos recursos atencionais são limitados. Como consequência, o cérebro precisa selecionar o que considera prioritário e inibir o que julga irrelevante — um processo que, embora eficiente, pode gerar consequências críticas.

Podemos identificar três tipos principais de cegueira cognitiva:

Cegueira por desatenção (Inattentional Blindness)
Quando estamos focados em uma tarefa, não percebemos eventos inesperados, mesmo que sejam visíveis.
Exemplo clássico: o “gorila invisível”.
Implicação: falhas na atenção seletiva que distorcem nossa percepção da realidade.

Cegueira à mudança (Change Blindness)
Ocorre quando alterações significativas no ambiente passam despercebidas.
Exemplo: uma pessoa troca de camisa durante uma conversa e o interlocutor não nota. O cérebro, nesse caso, não processa cada detalhe visual, mas constrói representações simplificadas do mundo.

Sobrecarga cognitiva funcional
Manifesta-se quando o volume de informações excede a capacidade do sistema cognitivo. O cérebro, incapaz de priorizar estímulos críticos, falha em reconhecer sinais essenciais.
Esse tipo é amplamente estudado em áreas como aviação, medicina e controle de tráfego aéreo, onde alertas importantes podem ser ignorados em situações de alta pressão.

A cegueira cognitiva envolve uma rede complexa de áreas cerebrais, entre elas:

  • Córtex pré-frontal dorsolateral (DLPFC): gerencia os recursos da memória de trabalho e direciona a atenção.
  • Córtex parietal: integra informações visuais e espaciais.
  • Rede de saliência: composta pela ínsula anterior, córtex cingulado anterior e amígdala, é responsável por decidir o que deve ser priorizado.
  • Tálamo: atua como uma “porta de entrada” sensorial, filtrando sinais antes que cheguem à consciência.

Quando a rede de saliência não classifica um estímulo como relevante, ele pode literalmente desaparecer da consciência — mesmo estando presente na retina.

A cegueira cognitiva não é apenas um conceito teórico; ela molda nossa percepção da realidade cotidiana.

Na psicologia clínica, pacientes podem ignorar elementos centrais de suas próprias experiências emocionais, o que dificulta o autoconhecimento.

Na educação, estudantes podem “não ver” informações importantes ao focar demais em detalhes secundários.

Na segurança do trabalho, sinais de perigo podem ser negligenciados por operadores sobrecarregados.

Na medicina e na aviação, falhas perceptivas comprometem diagnósticos e decisões críticas.

Em tempos de hiperestimulação digital, essa limitação se torna ainda mais preocupante: temos acesso a mais dados do que nunca, mas nossa capacidade de processá-los não acompanhou esse ritmo.

Assim, nossas decisões dependem das informações que chegam à consciência. Quando estímulos cruciais são ignorados, cometemos erros graves:

  • subestimamos riscos;
  • supervalorizamos detalhes irrelevantes;
  • criamos narrativas mentais coerentes baseadas em percepções incompletas.

A cegueira cognitiva revela, portanto, que nossa realidade subjetiva é muitas vezes uma versão editada da realidade objetiva.

Ela nos lembra que ver não é o mesmo que enxergar: nossos cérebros são sistemas seletivos, projetados para priorizar a sobrevivência — não para registrar cada detalhe do ambiente. Essa eficiência adaptativa, embora necessária, cobra um preço: perdemos informações que podem ser vitais.

Em um mundo dominado pelo excesso de estímulos, compreender os limites da atenção é essencial para aprimorar nossas decisões, nossa comunicação e nossas relações interpessoais.

Mais do que um fenômeno científico, a cegueira cognitiva é um espelho das fragilidades — e das estratégias — da mente humana.

Até a próxima.

Referências:

  • SIMONS, D. J., & CHABRIS, C. F. (1999). Gorillas in our midst: Sustained inattentional blindness for dynamic events. Perception, 28(9), 1059-1074.
  • KAHNEMAN, D. (2011). Thinking, Fast and Slow. Farrar, Straus and Giroux.
  • MENON, V., & UDDIN, L. Q. (2010). Saliency, switching, attention, and control: A network model of insula function. Brain Structure and Function, 214(5), 655–667.

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