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Ciência da Psicologia
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As religiões monoteístas sob a perspectiva da psicologia da religião

Uma análise simbólica das tradições judaica, cristã e islâmica como expressões arquetípicas da jornada espiritual humana segundo Jung e Campbell

Demerval Bruzzi (CRP 01/21380)

22/10/2025 15h47

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Foto: Freepik

A psicologia da religião dedica-se, desde suas origens, a compreender as formas pelas quais o ser humano experimenta, simboliza e se relaciona com o sagrado. Longe de se restringir a explicações teológicas ou sociológicas, essa abordagem busca investigar os processos psíquicos, simbólicos e existenciais que sustentam a vida religiosa, reconhecendo nas crenças e ritos expressões profundas da estrutura psicológica humana.

Nesse contexto, as três grandes religiões monoteístas — judaísmo, cristianismo e islamismo — oferecem um terreno fértil para reflexão, pois representam não apenas sistemas de crenças distintos, mas também expressões simbólicas de etapas fundamentais do desenvolvimento espiritual e psicológico do ser humano. A partir das obras de Joseph Campbell e da psicologia analítica de Carl Gustav Jung, é possível reinterpretar essas tradições não como narrativas exclusivas ou concorrentes, mas como manifestações complementares de um mesmo processo arquetípico de busca por sentido, transcendência e totalidade. Assim, nesta primeira parte de três, propõe-se uma leitura arquetípica dessas tradições à luz de Jung e Campbell.

Joseph Campbell, em obras centrais como O Herói de Mil Faces (1949), As Máscaras de Deus (1959–1968) e O Poder do Mito (1988), demonstrou que os mitos, longe de serem meras ficções antigas, são expressões simbólicas universais da experiência humana diante do mistério da existência. Para ele, todas as religiões e mitologias compartilham uma estrutura comum e cumprem quatro funções fundamentais: a metafísica, que conecta o ser humano ao transcendente; a cosmológica, que oferece uma explicação simbólica para a origem e estrutura do mundo; a sociológica, que estabelece normas e valores para a vida em comunidade; e a psicológica, que orienta o indivíduo em sua jornada interior de autoconhecimento e individuação. Sob essa perspectiva, os mitos não são lendas superadas, mas “linguagens da alma” que, por meio de símbolos e narrativas, conduzem o sujeito ao encontro com o numinoso.

A partir dessa chave interpretativa, o judaísmo pode ser compreendido como a primeira grande expressão monoteísta da história e como o mito fundador de um povo que transforma a experiência do sagrado em história e ética. A figura de YHWH, Deus único e transcendente, rompe com o politeísmo antigo e inaugura uma nova concepção do divino: não mais uma força natural ou entidade cósmica, mas uma vontade pessoal que se revela pela palavra, pela lei e pela história. Essa transição representa, segundo Campbell, uma revolução simbólica — o sagrado deixa de ser experimentado apenas fora do sujeito e passa a ser vivido na relação ética e dialógica com o outro.

O mito da Aliança com Abraão e Moisés expressa, em nível coletivo, o arquétipo do “Pai Legislador”, símbolo de ordem, estrutura e orientação. Em termos psicológicos, essa função corresponde ao processo de estruturação do ego e da consciência, que necessita de limites e referências para emergir do caos indiferenciado do inconsciente. O Êxodo, nesse sentido, não é apenas um evento histórico, mas uma metáfora da jornada interior de libertação: a passagem da escravidão psíquica para a liberdade da consciência. Assim, o judaísmo representa a etapa arquetípica da formação da identidade e da coesão, tanto no plano coletivo quanto no individual.

O cristianismo, por sua vez, simboliza a etapa seguinte dessa jornada simbólica e psicológica. Nascido do interior do judaísmo, ele retoma suas promessas e estruturas, mas as ressignifica em torno da figura de Jesus de Nazaré. Para Campbell, a vida de Cristo encarna com precisão a estrutura do “monomito” — a jornada do herói universal. Chamado à missão divina, enfrentando provações, passando pela morte e alcançando a ressurreição, Jesus representa o arquétipo do “Herói Redentor”, aquele que desce ao mundo das trevas para trazer luz e salvação à humanidade.

Jung interpreta essa trajetória como uma poderosa metáfora do processo de individuação: a morte e a ressurreição de Cristo simbolizam a dissolução do ego e a emergência do Self, a totalidade psíquica que integra consciente e inconsciente. A cruz, símbolo máximo do cristianismo, representa a travessia do limiar entre opostos — vida e morte, humano e divino, tempo e eternidade — e, portanto, a integração das polaridades que constitui o núcleo do desenvolvimento psicológico. Ao universalizar a mensagem de amor, perdão e reconciliação, o cristianismo transforma o mito do herói em paradigma existencial e convida cada indivíduo a viver essa mesma jornada interior: morrer para os apegos do ego e renascer para uma consciência mais ampla e compassiva. Assim, a religião cristã simboliza a etapa arquetípica da transformação, na qual o sujeito se reconcilia com suas sombras e ascende a uma nova dimensão de ser.

O islamismo, surgido no século VII, pode ser entendido como a culminação da tradição abraâmica e a etapa final do processo arquetípico de realização espiritual. Ao proclamar a unidade absoluta de Deus (tawhid), o Islã leva o monoteísmo ao seu ponto mais radical e metafísico: Alá não pode ser representado nem descrito, pois está além de qualquer forma ou conceito. Essa dimensão do divino corresponde ao arquétipo do “Uno Transcendente”, o Self em sua forma mais abrangente e cósmica, que não apenas integra a psique individual, mas também se manifesta como fundamento de toda a realidade.

A experiência religiosa islâmica enfatiza a entrega (islām) e a submissão consciente ao absoluto, representando simbolicamente a dissolução do ego na totalidade. Seus ritos centrais — a profissão de fé, a oração, o jejum e a peregrinação — dramatizam esse movimento de rendição e reconexão com o centro. A peregrinação a Meca, por exemplo, pode ser lida como a metáfora final da jornada do herói: o retorno ao ponto de origem, à fonte de onde tudo emana. Em termos psicológicos, o islamismo representa a unio mystica, o estado de unidade plena em que as fronteiras entre eu e mundo, humano e divino, consciente e inconsciente se dissolvem. Trata-se do estágio último do processo de individuação, em que o Self não é apenas reconhecido, mas vivido como totalidade.

Ao articular essas três tradições sob a ótica da psicologia da religião, da teoria dos arquétipos de Jung e da mitologia comparada de Campbell, percebemos que elas não são narrativas concorrentes, mas expressões simbólicas complementares de uma mesma jornada interior. O judaísmo corresponde ao momento em que a consciência busca ordem e estrutura; o cristianismo, ao processo de morte e renascimento do ego; e o islamismo, à dissolução final do eu na totalidade do ser. Essas etapas, observadas historicamente, também refletem movimentos psicológicos universais, repetidos na vida de cada indivíduo que empreende a busca pelo sagrado.

Assim, as religiões monoteístas revelam-se não apenas como construções sociais ou teológicas, mas como expressões do inconsciente coletivo e mapas simbólicos do processo de individuação. Cada uma narra, a seu modo, a história da alma humana em sua trajetória rumo ao mistério, oferecendo metáforas para as grandes etapas da jornada psíquica: estruturação, transformação e transcendência. Em última instância, como afirmava Campbell, os mitos são “metáforas do mistério da existência” e, quando compreendidos simbolicamente, tornam-se guias poderosos para a realização interior. Jung complementa essa visão ao lembrar que a religião, ao tocar o numinoso, não apenas explica o mundo, mas transforma aquele que a vivencia.

Dessa forma, judaísmo, cristianismo e islamismo podem ser lidos como caminhos distintos que conduzem a um mesmo destino: a reconciliação do humano com o divino e a descoberta, no íntimo da alma, daquilo que transcende todas as formas — a experiência viva do sagrado.

Até a próxima…

Referências
CAMPBELL, Joseph. O Herói de Mil Faces. São Paulo: Cultrix, 2007.
CAMPBELL, Joseph. As Máscaras de Deus. Vol. I-IV. São Paulo: Pensamento, 1992.
CAMPBELL, Joseph; MOYERS, Bill. O Poder do Mito. São Paulo: Palas Athena, 2000.
ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
JAMES, William. As Variedades da Experiência Religiosa. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
JUNG, C. G. Símbolos da Transformação. Petrópolis: Vozes, 2011.
JUNG, C. G. Psicologia e Religião. Petrópolis: Vozes, 2013.
OTTO, Rudolf. O Sagrado. Petrópolis: Vozes, 2007.

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