Neste segundo ensaio sobre a psicologia das religiões, permaneço em diálogo com Jung e Campbell, retomando pontos abordados na coluna anterior e reforçando que a religião, ao longo da história humana, não pode ser reduzida a um fenômeno meramente social ou institucional.
Sob a perspectiva da psicologia profunda e da análise simbólica do inconsciente, a religião se apresenta como espelho das dinâmicas psíquicas universais e como linguagem simbólica por meio da qual a mente humana expressa conteúdos arquetípicos que ultrapassam o indivíduo. Carl Gustav Jung concebeu o inconsciente não apenas como repositório de experiências pessoais reprimidas, mas como um vasto campo coletivo que abriga formas e imagens primordiais — os arquétipos — que estruturam a experiência humana em todos os tempos e culturas. Joseph Campbell, ao estudar os mitos e as religiões comparadas, demonstrou que essas imagens arquetípicas se manifestam de modo recorrente nas narrativas míticas e religiosas, revelando a unidade simbólica da experiência humana diante do mistério da existência.
Sob essa ótica, judaísmo, cristianismo e islamismo não são apenas sistemas teológicos distintos, mas expressões simbólicas complementares de movimentos profundos do inconsciente coletivo, dramatizados ao longo da história como caminhos espirituais.
O judaísmo representa a primeira grande expressão da psique humana na tentativa de organizar e dar forma ao caos interior por meio do símbolo do Deus único. A figura de YHWH, distante e transcendente, corresponde ao arquétipo do “Pai Legislador”, símbolo do princípio ordenador que estabelece limites, orienta e confere sentido. No plano psicológico, esse arquétipo reflete a necessidade, nos estágios iniciais da psique, de encontrar um eixo em torno do qual a consciência possa se estruturar. A Lei revelada no Sinai simboliza não apenas normas morais externas, mas a função estruturante que permite ao ego emergir do inconsciente indiferenciado e construir uma identidade coesa.
O mito do Êxodo dramatiza simbolicamente a jornada do ego que deixa o estado de escravidão — metáfora da inconsciência — e caminha em direção à liberdade — metáfora da consciência. O pacto entre Deus e o povo hebreu representa o momento em que a psique reconhece a existência de um centro ordenante além do ego e passa a se alinhar a ele. Essa etapa corresponde à primeira fase do processo de individuação descrito por Jung: a diferenciação da consciência e a formação de uma estrutura psíquica estável a partir da relação com o arquétipo paterno.
O cristianismo aprofunda esse processo simbólico ao introduzir a figura do “Filho”, arquétipo do herói redentor e mediador entre o humano e o divino. A narrativa da encarnação, paixão, morte e ressurreição de Cristo é, sob a ótica junguiana, uma das mais ricas dramatizações do processo de individuação. O nascimento de Deus como homem simboliza a irrupção do Self — a totalidade psíquica — no campo da consciência.
A vida de Jesus segue o padrão arquetípico do herói descrito por Campbell: o chamado, a travessia, as provações, a morte e o retorno transformado. Psicologicamente, essa trajetória reflete a jornada interior na qual o ego precisa sacrificar-se, morrer simbolicamente, para que uma nova consciência possa emergir — reconciliando os opostos e integrando aspectos antes rejeitados ou reprimidos. A cruz é, nesse sentido, mais do que um símbolo de sofrimento: representa o ponto de intersecção entre o vertical e o horizontal, o divino e o humano, o consciente e o inconsciente. A ressurreição simboliza a emergência de uma nova totalidade psíquica, mais ampla e integrada, em que o ego deixa de ser o centro da personalidade e se torna veículo do Self.
O cristianismo, portanto, simboliza a fase intermediária da jornada psíquica — aquela em que a consciência é transformada pela integração dos opostos e pela confrontação com o inconsciente.
O islamismo, por sua vez, expressa o movimento final dessa dinâmica simbólica: a dissolução do ego na experiência da totalidade absoluta. Ao proclamar a unidade indivisível de Deus (tawhid), o Islã aponta para o arquétipo do Self em sua forma mais abrangente — não apenas como centro da psique individual, mas como fundamento de toda a realidade.
Alá, que não pode ser representado nem concebido plenamente, corresponde ao mistério numinoso descrito por Rudolf Otto como mysterium tremendum et fascinans: ao mesmo tempo aterrador e fascinante, inalcançável e presente. As práticas islâmicas — oração, jejum, caridade, peregrinação — simbolizam o processo de rendição do ego e sua progressiva dissolução diante do Uno. A prostração durante a oração é a imagem corporal dessa dinâmica: o eu se curva e se entrega ao centro transcendente. A peregrinação a Meca representa o retorno ao ponto de origem, ao centro arquetípico de onde a psique emana e ao qual deseja regressar.
Essa etapa corresponde à culminação do processo de individuação, em que a consciência deixa de se perceber como entidade separada e reconhece sua identidade com a totalidade do Ser.
Vistas sob a lente da análise simbólica do inconsciente, as três tradições deixam de ser compreendidas como sistemas concorrentes e passam a ser lidas como metáforas psíquicas de um mesmo processo interior. O judaísmo representa o estágio em que a consciência nasce e precisa de estrutura; o cristianismo, a fase de transformação e integração, na qual o ego se sacrifica para que o Self se manifeste; e o islamismo expressa o movimento final de dissolução e união, quando a consciência reconhece sua identidade com o absoluto.
Esses estágios, embora descritos historicamente em sequência, coexistem dentro de cada indivíduo e se repetem em diferentes níveis ao longo da vida psíquica. A religião, nesse sentido, não é apenas crença em algo externo, mas uma linguagem simbólica que dramatiza os movimentos mais profundos da alma em direção à totalidade.
Essa leitura junguiana-campbelliana nos permite compreender que a religião cumpre uma função essencial na vida psíquica: fornece imagens e narrativas por meio das quais o inconsciente se expressa e a consciência se orienta em sua jornada evolutiva. Quando tomadas literalmente, essas narrativas podem gerar dogmas e divisões; quando compreendidas simbolicamente, tornam-se mapas do processo interior e instrumentos de transformação.
Em última análise, judaísmo, cristianismo e islamismo são expressões diferentes de um mesmo impulso arquetípico: a busca humana por estrutura, sentido, integração e unidade com o mistério que transcende o eu. São, portanto, não apenas histórias sobre Deus, mas histórias sobre a alma humana — sobre seu nascimento, sua morte e sua fusão final com o sagrado.
Até a próxima.
Referências
CAMPBELL, Joseph. O Herói de Mil Faces. São Paulo: Cultrix, 2007.
CAMPBELL, Joseph. As Máscaras de Deus. Vol. I-IV. São Paulo: Pensamento, 1992.
CAMPBELL, Joseph; MOYERS, Bill. O Poder do Mito. São Paulo: Palas Athena, 2000.
ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
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JUNG, C. G. Símbolos da Transformação. Petrópolis: Vozes, 2011.
JUNG, C. G. Psicologia e Religião. Petrópolis: Vozes, 2013.
OTTO, Rudolf. O Sagrado. Petrópolis: Vozes, 2007.