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Analice Nicolau
Analice Nicolau

Vulica pinta novas memórias em Brasília

Colunista Analice Nicolau

23/09/2025 19h00

Ledania & Shaday Gomez – A ansiedade altera a percepção da realidade

Murais, mediação e intercâmbio cultural: a primeira edição brasileira o evento consolida o eixo Conic–SCS como galeria viva e ponto de convivência

O Vulica nasceu em Minsk na Bielórrussia com um propósito direto e ambicioso: transformar uma antiga zona industrial em polo criativo, usando a arte urbana como linguagem pública, acessível e viva. Ao ocupar a Rua Oktyabrskaya/Kastrychnitskaya, o festival reanimou galpões e fachadas com murais monumentais, instalações, esculturas e intervenções em bondes, metrô, chaminés e pontes, abrindo caminho para uma virada cultural que colocou a capital belarussa no mapa internacional da street art. A força da participação brasileira rendeu um apelido simbólico ao eixo revitalizado: “Rua Brasil”, sinal de um intercâmbio artístico que se tornou a marca do projeto.

Festival Vulica 2025 – Conic, Brasília

Entre 2014 e 2019, a plataforma realizou cinco edições em Minsk, somando mais de cinquenta intervenções urbanas e eventos multidisciplinares que iam de seminários de urbanismo e sustentabilidade a cinema, música e dança. Em uma das edições, a festa de encerramento reuniu público na casa das dezenas de milhares em apenas 24 horas, indicador do poder de mobilização que a arte pública conquistou naquele território. O impacto não se limitou à estética: o festival funcionou como laboratório de cidadania cultural, aproximando artistas, moradores e comerciantes em torno de um mesmo circuito.

Depois da primeira etapa em Belarus, o projeto consolidou sua identidade institucional e passou a operar também no Brasil, mantendo o DNA de intercâmbio e vocação educativa. Em Brasília, antes da estreia como festival em ruas e empenas, houve passos preparatórios que ajudaram a costurar a cena local: ações de urbanismo tático no Conic e programação expositiva conectada à cidade criativa, amadurecendo parcerias e escuta com a comunidade. Esse caminho pavimentou a chegada da sexta edição, a primeira brasileira, com foco no centro histórico da capital.

Juliana Lama – Sono sonho som

A escolha de Brasília não é casual. A arquitetura modernista e a escala monumental do Plano Piloto criam um diálogo natural com murais de grande formato, enquanto o Conic e o Setor Comercial Sul condensam camadas simbólicas de sociabilidade, cultura e economia criativa. Ao longo de 14 dias, o festival estabeleceu um circuito caminhável que permitiu experiências sucessivas de leitura visual: do cromatismo pop e surreal do Bicicleta Sem Freio ao gesto caligráfico de Rafael Sliks; do véu luminoso de L7Matrix às narrativas sobre ancestralidade e resistência em “Trilha”, de Enivo.

A edição brasileira registrou o maior número de mulheres da história do Vulica, um marco curatorial que reequilibra vozes e amplia repertórios. Hanna Lucatelli aprofundou a poética do feminino em escala monumental; Juliana Lama tencionou o descanso como motor criativo; Rowan Bathurst ligou linhagens de mulheres, da Vênus de Willendorf ao presente; e a parceria de Ledania & Shaday Gomez traduziu, em fragmentos visuais, o fenômeno psicológico da ansiedade. Essa presença não é apenas quantitativa: desloca temas, corpos e sensibilidades que historicamente ficaram à margem dos grandes muros.

No plano social, a programação combinou oficinas, visitas guiadas, caminhadas urbanas e conversas abertas, com atenção especial a grupos escolares e a comunidades de refugiados, em articulação com redes locais e espaços de ciência e cultura. A intervenção no Beco do Rato, convertendo-o em Galeria dos Becos, ilustra a metodologia do Vulica: ativar espaços de passagem como lugares de permanência, encontro e pertencimento, deixando legados materiais e simbólicos.

Oficina de Grafitti com Ramon Phanton

O financiamento via seleção cultural e mecanismos de fomento reforça a institucionalidade do projeto, ao mesmo tempo em que preserva sua pulsação de rua. Esse equilíbrio, entre política pública de cultura e prática independente da arte urbana, é parte do sucesso do Vulica desde Minsk; garantir escala e continuidade sem perder a experimentação que define o gesto do spray.

Se em Belarus a rua ganhou o apelido de Brasil, em Brasília os muros ganharam sotaque internacional. A cartografia afetiva que emerge dessa estreia brasileira inscreve a capital no circuito global da arte urbana e reabre, no centro da cidade, uma conversa necessária sobre como olhar, habitar e cuidar dos espaços comuns. O festival não só deixou 11 obras; deixou também um método: aproximar públicos diversos, ativar memórias e reconectar o cotidiano à potência transformadora da arte.

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